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O suíço que refaz florestas 3w1f

Uma fazenda improdutiva no Sul da Bahia virou laboratório para um estrangeiro que decidiu dedicar a vida a formas revolucionárias de se recuperar biodiversidade.

Aline Ribeiro ·
26 de janeiro de 2007 · 18 anos atrás

A fala mansa e pausada, mas nem por isso menos incisiva, é um dos indícios de que, por trás do modo de vida simples do suíço Ernst Götsch, existem objetivos firmes. Dedicar-se à natureza com afinco é o principal deles. No Brasil desde os anos 80, Götsch conseguiu um feito inédito que o colocou entre as maiores autoridades em sistemas agroflorestais. Ao aliar agricultura à formação de florestas, devolveu a uma fazenda de pouco mais de 600 hectares no sul da Bahia, com solos esgotados e índices baixos de nutrientes disponíveis, o maior bem que ela poderia desejar: a vida. Criou um modelo particular, com base na sucessão natural de espécies que permite a convivência entre plantas nativas e exóticas. Castanha do Pará, cupuaçu, jaca, mandioca, abacaxi, tomate, quiabo, abacate, palmito juçara, maçaranduba e outras espécies dividem a mesma terra e ajudam a encorpar uma vegetação que já não tinha chances de se perpetuar.


A mata densa e exuberante trouxe de volta à região uma fauna rica em busca de algo que se torna escasso em grandes partes do Brasil: fartura de alimentos e águas vivas e saudáveis. As 17 microbacias hidrográficas, cada uma delas com numerosas nascentes, voltaram a ter córregos com água limpa durante todo o ano, o que proporciona um microclima diferenciado ao local. A temperatura da floresta de Götsch, normalmente, é de entre 3 a 5º C mais baixa do que no entorno. “É muito comum chover aqui dentro da área, e não cair uma gota na região”, conta, com orgulho.

A receita do sucesso não tem grandes segredos. Basta ser um bom dispersor das sementes, aproveitando as contribuições do próprio ecossistema e deixar que elas, uma vez germinadas, definam seus destinos. Segundo Götsch, as espécies agem como se fossem uma grande cooperativa e cada uma assume uma função distinta. Esta sintonia é a chave para a recuperação dos recursos naturais.

Ao caminhar pela mata, Götsch mostra que conhece sua floresta como a palma da mão, centímetro por centímetro. E não é exagero. Por cada árvore que amos, ele descreve com detalhes como realizou a poda, que espécies plantou ao redor e como isso vai interferir no desenvolvimento daquele exemplar. É como se cada uma tivesse nome e espaço pré-determinados. “Isso aqui”, diz, apontando para uma plântula de cacau, “foi trazido por uma paca. Se está aí, é porque tem uma função a cumprir nesta área.” Mais à frente, uma parada para saborear um cacau já maduro e mais uma demonstração de que, na mata, cada coisa tem seu devido lugar. “Vamos jogar as sementes num lugar mais adiante.” O terreno sugerido ficara de fora de seu último plantio e precisava de alguns cacaueiros para se tornar completo.

De lá pra cá

Quando morava na Suíça, Götsch era funcionário público e trabalhava com melhoramento genético de plantas forrageiras. Liderava uma equipe com estagiários de todo o mundo e recebia, com freqüência, convites para visitar os mais diversos países. Nunca aceitou nenhum, exceto o que tinha o Brasil como destino. É que, desde criança, acreditava que nessas terras tropicais estava seu lugar dos sonhos. Mas quando pisou pela primeira vez por aqui, em meados dos anos 70, teve uma grande desilusão. A devastação era tamanha que levou Götsch para a Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, em estado de choque. “Cheguei a ficar em coma”, lembra. A viagem foi encurtada e, em seis semanas, ele estava de volta ao seu país, com nova missão em mente: “em vez de adaptar plantas às condições que oferecemos, tentar criar condições, ao cultivá-las, em que elas se sintam bem”.

Em 1984, mudou-se para o Brasil de vez. Um amigo lhe propôs acordo que, mais tarde, garantiu a Götsch o dinheiro para comprar suas próprias terras. Foi nessa época que adquiriu a fazenda na zona rural de Piraí do Norte, no sul da Bahia, e, com ela, veio o desafio de transformar os solos exauridos em produtivos. A região, no ado, conheceu os efeitos da criação de porcos nas baixadas, plantio de mandioca nas encostas e extração de madeira no restante das áreas. O nome da fazenda traduz bem as conseqüências das ocupações: Fugidos da Terra Seca. “Acreditei, e ainda estou convicto, que qualquer área, esgotada que seja, pode ser recuperada, se quisermos e soubermos interagir de modo que aconteça”, comenta Götsch.

A propriedade dele, é a prova do seu discurso. A mudança é tão grande que, mediante a implantação de sistemas complexos e intervenções como capina seletiva, raleamento, podas de rejuvenescimento e de estratificação, a fazenda improdutiva com vastas áreas degradadas se transformou em um conjunto de belos, ricos e diversificados “jardins florestais”. Grande parte das áreas recuperadas foi transformada numa reserva particular do patrimônio natural (RPPN). Götsch, porém, não está convencido que essa seja a melhor maneira de se tratar a área. Mas foi a melhor alternativa que encontrou até agora. “Tem pouca compreensão do que faço. A grande maioria dos vizinhos daqui, por exemplo, acham que sou louco, que poderia ganhar muito dinheiro com a fazenda, explorando as riquezas acumuladas nela. Transformar minha área em RPPN foi uma desculpa para deixar as áreas recuperadas sem fazer mais intervenções nelas, a fim de ganhar tempo para me dedicar, sem ter de me justificar, a outras áreas a serem enriquecidas.”

Götsch não define seu trabalho como um sistema agroflorestal. Ao pé da letra, diz que agro significa campo aberto, monótono, área cultivada, o que não pode casar com floresta. Assim, adotou o termo da língua inglesa, Forest Garden (jardim florestal), que considera mais propício para o que faz. Hoje com 59 anos, conta que tudo o que sabe aprendeu na prática como autodidata ou do estudo da pouca literatura que existe a respeito. Não tem formação acadêmica, porque foi expulso três vezes da escola por questionamento, considerado abusivo, do conteúdo do ensino. O suíço defende, em sua filosofia, total rejeição aos agrotóxicos, uma vez que não acredita que as doenças que atacam a plantação são maléficas. “Pragas, no entanto, é o que podemos chegar a ser, quando por cegueira combatemos insetos, fungos e bactérias que tentam nos avisar dos erros que cometemos, ou nos mostrar os pontos fracos dos nossos arranjos.”

Pelo menos durante três meses por ano, Götsch viaja para diferentes locais do Brasil para realizar trabalhos de consultoria e de ensino, ando para outros as experiências obtidas em seu jardim florestal. “O problema maior é que partimos do absurdo de achar que a vida gira nos mesmos princípios da nossa economia moderna, isto é, da concorrência e da competição fria. Estes resultam em escassez, em conflitos, guerras, e no final, na falência e na morte. Os princípios em que a vida gira, no entanto, são relações, tanto intra- , como inter-específicas, baseadas no amor incondicional e na cooperação. Resultam em abundância, paz e em vida cada vez mais próspera.” Em sua fazenda, o ideal deu certo. Ele e sua família vivem primordialmente do que produzem e do dinheiro da venda de cacau, cupuaçu e frutas desidratadas – produtos de sua propriedade.

Na Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), órgão do Ministério da Agricultura que atua em seis estados do Brasil com o segmento agropecuário, as técnicas de Götsch foram mais que aprovadas. “Estamos transitando dos princípios da revolução verde [práticas agrícolas que permitiram um vasto aumento na produção em países menos desenvolvidos durante as décadas de 60 e 70], que têm uma visão muito produtivista, para os conceitos ensinados por Ernst, que se baseiam em modelos alternativos e menos agressivos à natureza. Os resultados são fantásticos”, revela João Antônio Firmato de Almeida, assessor técnico do Núcleo de Agroecologia da Ceplac. Enquanto isso, Gotsh segue transformado o sul da Bahia na floresta em que ele sempre sonhou em conhecer.

  • Aline Ribeiro 206834

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