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Tem macaco novo na Floresta da Tijuca 6s4j3n

Uma crônica sobre os problemas e alegrias do início da reintrodução do bugio ruivo no Rio de Janeiro na visão de pesquisadores do projeto

Luísa Genes · Tomaz Cezimbra · Giuliana Caldeira Pires Ferrari ·
6 de setembro de 2017 · 8 anos atrás

Por mais de 200 anos não se registrava na Floresta da Tijuca a presença de bugios, espécie considerada localmente extinta na cidade do Rio de Janeiro. Até que os bugios Kala, Chico, Hanuman e Maia foram levados à Floresta para mudar esse cenário e se tornar parte da população fundadora da espécie na cidade.

Para quem nunca foi à capital do Estado, o Parque Nacional da Tijuca é uma grande mancha florestal ocupando as partes mais altas do meio da cidade, e pode ser ada por caminhos cujo ponto em comum é a incrível quantidade de verde e sombra em meio ao clichê da selva de pedra do Rio. Subindo de carro ou a pé, é patente a diferença na pureza do ar e na energia do lugar; cariocas gostam de subir a floresta pelas suas trilhas e cachoeiras, e não é incomum encontrar um ou outro gringo apaixonado pelas florestas tropicais decidido a explorar os verdes eternos de uma das maiores florestas urbanas do mundo.

“Hanuman não estava cumprindo nenhum papel ecológico e, assim, perdeu a chance de ficar livre junto a macacos de sua própria espécie”

Algumas pessoas, no entanto, sobem à Floresta toda semana com um propósito bem diferente. Não são turistas, alguns não são cariocas, mas todos compartilham de uma mesma direção: são integrantes e voluntários do Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações (LE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O objetivo de subir a floresta toda semana? Soltar e rastrear macacos.

Para restaurar interações ecológicas há muito tempo perdidas e experimentar técnicas de reintrodução na prática, em um laboratório vivo, em 2009 o LE deu o primeiro o no que se tornaria um ambicioso projeto de refaunação, ou melhor dizendo, de reconstrução de toda a fauna extinta da Floresta da Tijuca. Esse o foi a reintrodução da cutia (Dasyprocta leporina) com 31 indivíduos soltos entre 2010 e 2014. A última estimativa, feita em 2015, estimou um crescimento populacional de 100% ao ano e os 35 indivíduos capturados eram todos nascidos na floresta; a população vingou, cresceu e está saudável. A história das cutias merece uma crônica à parte.

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Primeiro grupo de bugios reintroduzidos: Hanuman, Kala, Chico e Maia. Os animais permanecem poucas semanas em um cercado para se aclimatarem e ganharem peso antes da soltura. Foto: Luísa Genes

Em 2015, um segundo o foi dado com a reintrodução do pequeno grupo de quatro bugios ruivos (Alouatta guariba). Esses primatas se alimentam de folhas e frutos, dispersando as sementes das árvores nativas e possibilitando, assim, a contínua regeneração da Floresta. Além disso, suas fezes atraem besouros rola-bostas, que as enterram no solo florestal, preenchendo com nutrientes e tornando o terreno favorável para o crescimento das árvores. Eles são responsáveis por toda uma inimaginável rede de interações ecológicas que até então estava desaparecida do Parque da Tijuca.

Kala, Chico, Hanuman e Maia foram equipados com radiotransmissores para serem localizados na floresta, mas os rádios de alguns deles falharam poucos meses após a soltura. Ainda no ano ado, Chico deixou de ser visualizado após a falha de dois equipamentos.

Ainda antes dessas complicações, Hanuman ou a descer das copas das árvores, onde bugios am a maior parte do tempo, e a andar pelo chão próximo a estradas recebendo atenção e alimento de visitantes do Parque. Após tentativas mal-sucedidas de evitar que os visitantes se aproximassem do animal, Hanuman teve que ser retirado da Floresta, já que a sua proximidade de estradas e turistas encantados com a oportunidade de alimentar um animal selvagem colocavam em risco sua saúde e vida. Além disso, ele não estava cumprindo nenhum papel ecológico e, assim, perdeu a chance de ficar livre junto a macacos de sua própria espécie.

Kala é uma estrela dessa história, pois faz parte do grupo original que ainda permanece na floresta e é monitorada com sucesso, duas a três vezes na semana. Sabemos que Kala veio do CETAS-RJ, o Centro de Triagem de Animais Silvestres, em Seropédica, mas sua origem  antes disso é incerta. Provavelmente era uma bugia selvagem resgatada de algum acidente ou encontro com humanos, por exemplo, atropelamento, um dos males mais frequentes que vitima animais silvestres. De qualquer modo, Kala é arredia, evita contato com os primatas menos peludos do que ela que insistem em caminhar pelas trilhas da Floresta. Uma ótima característica de personalidade para ela e o projeto.

“Kala e Juvenal continuam na floresta, um lindo casal que nos enche de energias positivas e determinação. E finalmente, mês ado, uma incrível notícia: um filhote”

Novos macacos foram levados à floresta: Juvenal, em 2016, que logo foi visto em par com Kala. O casal permanece junto até hoje. César, outro macaco da segunda leva, em 2017, foi levado à floresta em uma tentativa de reintrodução. Infelizmente  por ter ado muito tempo em cativeiro antes da reintrodução, teve problemas semelhantes ao de Hanuman após a sua soltura e foi também retirado do Parque.

Um evento inesperado foi a súbita epidemia de febre amarela, que adoeceu moradores do Estado. A vida do bugio-ruivo no Rio de Janeiro não está fácil; esses animais são sensíveis à febre amarela e, para piorar, mais uma vez a ignorância humana leva a comportamentos destrutivos: notícias publicadas de pessoas atacando bugios e outros primatas por medo de serem contaminados com febre amarela demonstra o quão longe chegamos na total dissociação com a natureza: não somos mais parte dela. Em vez disso, é costume vê-la como um problema a ser exterminado.

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Kala e o filhote ainda não nomeado, Agosto de 2017. O filhote, ainda pequeno, necessita da presença e aconchego da mãe para sobreviver. Ele se esconde embaixo de sua barriga ou às vezes tenta escalá-la, se segurando com firmeza no pelo de Kala para não despencar das árvores. Foto: Luísa Genes

Não existe, no entanto, motivo para desistir.  O projeto, por mais atribulado com problemas internos e externos ao processo da reintrodução, pode dar certo, e faremos o possível para que continue avançando. Mais do que o compromisso com ciência de qualidade, existe um compromisso ético na base da biologia da conservação que move os integrantes do LE para frear a mancha de destruição que nós humanos espalhamos pelo globo.

Kala e Juvenal continuam na floresta, um lindo casal que nos enche de energias positivas e determinação. E finalmente, mês ado, fomos agraciados com uma incrível notícia: um filhote! É uma grande notícia, e entusiasmo e animação são atitudes muito positivas ao projeto, mas deve-se evitar assediar a mãe e o bebê neste momento delicado. É sempre importante lembrar que não se deve tentar alimentar os macacos e, caso os encontre no meio do mato, prosseguir em silêncio e em cautela, nunca saindo das trilhas para persegui-los.

O que às vezes pode parecer um trabalho de Sísifo, em outros momentos pode ser visto pelos olhos de Eduardo Galeano ao descrever o que é utopia: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois os, ela se afasta dois os. Caminho dez os e o horizonte corre dez os. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” De forma alguma pretendemos representar reintroduções como intermináveis ou utópicas, mas é decerto um trabalho contínuo e complexo, motivado pela inspiração de lutar contra a correnteza da extinção das espécies, enfrentando os desafios e incertezas que isso implica.

 

Agradecimentos: Este projeto não seria possível sem o envolvimento direto do Centro de Primatologia do Rio de Janeiro; do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS-Estácio); do Ibama, da Fundação Oswaldo Cruz e a parceria do Parque Nacional da Tijuca.

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Comentários 10 3x6427

  1. Isadora diz:

    Boa tarde, estive por lá no domingo 16/01/2022 pela segunda vez. E a energia do lugar é inacreditável, me senti agraciada por ter algo tão belo e único tão próximo e ao nosso alcance, permaneci no Parque durante horas e fui embora a noite! Caminhei pelas trilhas, e em nenhum momento eu consegui observar animais de médio porte, os Bugios por exemplo temos notícias deles até 2017. Mais e agora em 2022? Gostaria de saber se ainda temos essas vidas selvagens em nosso Parque! Atenciosamente quem ama a natureza.


  2. Plínio L. Senna diz:

    Muito boa esta história !… Excelente trabalho: muitas cutias, um primeiro filhote de bugio. Agora, aguardo o segundo capítulo dos bugios. E, por falar em refaunação, no quê deu o projeto com antas na REGUA ? … Parabéns por driblarem as dificuldades !


  3. José diz:

    E o Maia? Contou o destino de todos, menos do Maia. Hanunan teve que ser retirado, assim como Cesar. Chico deixou de ser visualizado. Kala e Juvenal "casaram" e tiveram filho. E o Maia?


  4. Fabio diz:

    Muito legal! Espero que consigam mais bugios para reintroduzir na Tijuca. E que algum pesquisador se anime a determinar como vacinar os bujas contra febre amarela.


  5. Ricardo Porto diz:

    Muito legal mesmo este trabalho. Moro no entorno da Floresta da Tijuca, mais precisamente no Horto, alto Jardim Botânico. Infelizmente, a invasão do ambiente natural pelo homem degrada as condições de vida ideais dos habitantes da floresta. Aqui mesmo em meu apartamento, volta e meia sou visitado por macacos pregos ávidos por qualquer coisa que lembre comida – atacam pacotes de biscoito, caixa de leite, além de bananas e frutas, é claro. Para chegar, são obrigados a cruzar a Rua Pacheco Leão, provenientes da área do Jardim Botânico. Evidente que me preocupo com este contato direto, menos pelos alimentos e pelo stress de ver um macaco nervoso dentro de casa, mais pela assiduidade que isso a a ocorrer, especialmente em períodos de seca. Não sei se existe também este controle da qualidade de vida de outros primatas na Floresta da Tijuca. Definitivamente, evito que os macacos tenham o ao alimento humano e não estimulo o contato. Abraços, Ricardo.


  6. Gustavo Romeiro diz:

    Meus mais apaixonados parabéns a essa iniciativa excelente!
    A refaunação precisa ser ampliada e nós humanos temos que aprender a conhecer e conviver com nossa biodiversidade!
    Mas fiquei com uma dúvida: Hanuman e César, os bugios que foram retirados da floresta, certamente proporcionavam experiências muito boas aos frequentadores do parque.
    Suas interações com a biodiversidade da floresta por certo não eram tão ricas, mas certamente ocorriam algumas interações.
    Porque seria preferível eliminar esses fatores e impedi-los da chance de viver e se procriar ali em seu habitat ao invés de assumir os riscos?
    Por favor, amigos, preciso compreender essa justificativa.


    1. phillipe diz:

      Gustavo Romeiro, sou biólogo faço mestrado em Conservação da Biodiversidade na RURAL de PE, e partilho da opinião que mesmo "não cumprindo nenhum papel ecológico" como afirmaram, vale mais o bicho aproveitar seu momento de liberdade, mesmo que num futuro próximo venha a óbito, do que voltar pra um recinto e viver o resto da vida trancado. E outra observação "papel ecológico" por "papel ecológico", ele desempenharia mesmo se fosse morto, uma vez que teria toda a interação trófica entre os decompositores e o bicho morto.


      1. Luísa Genes diz:

        Olá! Muito obrigada pela curiosidade!
        Eles não estavam se alimentando muito dos frutos e folhas da floresta, estavam magros e Hanuman chegou até a ficar um pouco doente. O convívio com seres humanos é realmente muito ruim para a saúde deles – além de todas as questões acerca do papel ecológico. Além disso, a interação com humanos gera riscos de transmissão de doenças para ambos os lados


    2. Luísa Genes diz:

      Olá! Muito obrigada pela curiosidade!
      Eles não estavam se alimentando muito dos frutos e folhas da floresta, estavam magros e Hanuman chegou até a ficar um pouco doente. O convívio com seres humanos é realmente muito ruim para a saúde deles – além de todas as questões acerca do papel ecológico. Além disso, a interação com humanos gera riscos de transmissão de doenças para ambos os lados.


  7. paulo diz:

    Parabéns pela atitude e ação.