Análises

A sustentabilidade, o homem e as estrelas nos tempos de pandemia 1k5g23

Sempre que o Homo sapiens opera em seu modo habitual, naquela zona de conforto vendida como “natural”, o desconforto acaba sendo das outras espécies

Paulo Groke ·
2 de julho de 2020 · 5 anos atrás
Céu estrelado no Parque Estadual de Campos de Jordão. Foto: Bianca Schumacher/Wikiparques.

Sempre que o Homo sapiens opera em seu modo habitual, naquela zona de conforto vendida como “natural”, o desconforto acaba sendo das outras espécies. Mas e quando acontece o contrário? Quando é a nossa espécie que precisa se reinventar, com a economia e seus movimentos sendo desacelerados à força, a situação muda de figura: aí é a vez da flora e da fauna reclamarem seus espaços de origem.

Quer um exemplo? Em tempos de Covid-19, centenas de registros vêm mostrando a bicharada aparecendo em ambientes urbanos: vimos uma medusa nos canais de Veneza, coiotes em uma praia de São Francisco, crocodilos andando pelas ruas da Carolina do Sul, cangurus em Adelaide, leões marinhos em Mar Del Plata e por aí vai. Bastou um momento de desaceleração para que bichos e plantas pudessem dizer “estamos aqui, olhem!”.

Ao contrário, parece oportuno dizer que brotam, também, nas redes sociais, milhares de cliques que se voltam ao céu colorido pelo pôr do sol, visto de dentro das nossas “gaiolas”. Afinal de contas, seja como for, quem é que está preso agora?

Independentemente do coronavírus, em algumas regiões do estado de São Paulo, onde os ciclos econômicos tradicionais se esvaíram, a Mata Atlântica – tão devastada nos últimos séculos – vem ressurgindo e dando oportunidade para o desenvolvimento de novos negócios mais sustentáveis. Mas também é tempo de retrocessos: a publicação do novo atlas do bioma, realizada recentemente pela Fundação SOS Mata Atlântica, mostrou, após anos de esperançosa redução, significativo aumento de 27% no índice de desmatamento. Na Amazônia, o crescimento foi ainda maior: 55% nos primeiros quatro meses deste ano, comparado ao mesmo período de 2019, segundo o INPE. “O tempora! O mores!”, bradaria novamente Cícero.

Assim, processos evolutivos, a ocupação dessa ou daquela espécie, estão permanentemente em movimento, embora não os percebamos de maneira tão evidente como agora, quando fomos praticamente obrigados, por um microrganismo, a desacelerar. A vida é mesmo uma grande e constante transformação.

A chegada da nossa espécie no planeta, espantosamente recente se levarmos em conta a idade da Terra, coincidiu com o seu momento de maior biodiversidade, mas parece não termos exata noção do privilégio que esse acaso nos proporcionou. Prova disso é que, com os destemperos comportamentais da humanidade, somos os responsáveis por uma gigantesca onda de extinção.

“A chegada da nossa espécie no planeta, espantosamente recente se levarmos em conta a idade da Terra, coincidiu com o seu momento de maior biodiversidade, mas parece não termos exata noção do privilégio que esse acaso nos proporcionou.”

Vide números alarmantes do aumento contínuo no desmatamento das nossas florestas e, consequentemente, do lar de milhões de espécies – das 10 milhões de espécies que estima-se existir na Terra, mais da metade está nas florestas tropicais. E isso, evidentemente, não é exclusividade do Brasil. Dados da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), apontam que as taxas de extinção da fauna e da flora estão se elevando em ritmo acelerado em todo o mundo: avalia-se que, em média, a quantidade de espécies nativas na maioria dos principais hábitats caiu cerca de 20% nas últimas décadas.

Quando a pandemia se tornar uma mera recordação, acreditem, voltaremos a acelerar a economia, essa irável entidade que a quase todos controla. No rastro desse impulso, a humanidade novamente avançará e chegará nas bordas dos últimos refúgios selvagens. Será mais um golpe na biodiversidade, nas águas, nas relações com os povos tradicionais. E, mais cedo ou mais tarde, contra todos nós!

Como resultado, nesse conturbado contato na fronteira também levaremos nossos animais domésticos, misturando-os com a fauna silvestre. Nesse ambiente, um humano faminto ou chegado a excentricidades, resolverá comer algo de gosto duvidoso, como um morcego ou um pangolim, e contrairá um dos milhares (ou serão milhões?) de tipos de vírus que estão quietinhos em seu selvagem recanto.

Esse contato, claro, sempre existiu. A diferença é que, no ado tribal, a nossa baixa densidade populacional e o isolamento restringiam a magnitude dos eventos e das epidemias. Empresas e governos não quebravam, simplesmente porque ainda não existiam. Quantos morreram jamais saberemos ao certo, mas a conta agora é mais fácil (e dolorosa) de ser feita.

Do mesmo modo, também é certo que já existiam líderes que atribuíam as mortes por doenças aos espíritos do mal. Sempre existiram charlatães e suas curas ditas milagrosas. Deste processo ninguém sai feliz. Advém a pandemia, peste, flagelo. No rastro do sinistro vem a crise, ou crash, ou quebra, ou falência. E mais flagelo.

Aí vem aquilo que, como espécie pretensiosa que somos, denominamos de recomeço. E o nosso avanço é retomado, assim como a dança dos índices do mercado, reflexo maior do nosso falso domínio sobre o natural. Mas quem sabe agora estejamos mais abertos ao aprendizado, não é?

A esperança é que desses tempos tão desafiadores emerja, enfim, um mundo melhor, que nos ofereça alguma noção do privilégio que é viver no único planeta que sabemos existir vida. Que a sociedade clame para que cessem o desmatamento, a grilagem e os garimpos ilegais. Que nossas escolhas se fundamentem naquilo que é equilibrado e justo – para todas as vidas e não apenas para nossa própria existência. No qual o conhecimento científico seja valorizado acima das crendices e dos desvarios políticos.

Que possamos fundamentar a economia em negócios lucrativos e verdes, com carbono neutro, com rios e mares limpos, com menos produtos de fontes fósseis e com menos pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Um mundo no qual a biodiversidade, os recursos e a beleza estejam disponíveis para quem nos suceder. A isso damos o nome de sustentabilidade.

Ah! Quanto as estrelas, elas reapareceram também, mas quase sempre estiveram lá. Seus ciclos de vida e morte não estão nem aí para os altos e baixos do Homo sapiens.

 

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

Leia Também 

A tal da sustentabilidade

A natureza no mundo pós-Covid-19

A sustentabilidade no Brasil pós-pandemia e o apartheid nacionalista

 

  • Paulo Groke 134r1r

    Diretor Superintendente do Instituto Ecofuturo, Paulo Groke é engenheiro florestal (ESALQ/USP), e especialista em ecoturismo ...

Leia também 84q8

Análises
18 de maio de 2020

A sustentabilidade no Brasil pós-pandemia e o apartheid nacionalista 5b5915

No último meio século avançamos conceitualmente. Ética e sustentabilidade ocuparam os espaços mais nobres da discussão planetária. É preciso resgatá-las neste processo de refluxo

Colunas
27 de abril de 2020

A natureza no mundo pós-Covid-19 m2f1l

É preciso retomar nosso lugar no mundo como parte da natureza. Sem essa percepção, não há ODS que resolva, não há pandemia que nos faça refletir

Colunas
14 de novembro de 2008

A tal da sustentabilidade 594u17

O conceito demanda cuidado. Estudos mostram que sustentável, em geral, significa apenas que uma atividade é menos destrutiva que outra e não que ela garante a conservação.

Mais de ((o))eco 6q6w3q

sustentabilidade 5c1s45

Colunas

O trabalho infantil e a responsabilização do futuro do planeta às crianças m3g6w

Análises

Quanto de sapiens e quanto de grilo? 1h5a2h

Salada Verde

Os caminhos para integrar a natureza brasileira aos espaços urbanos 4v3759

Reportagens

Pecuária sustentável traz esperança para a conservação do Pantanal 4i151k

Covid-19 n1k18

Reportagens

País não reforçou controle sanitário do comércio de animais na pandemia 6w4q52

Reportagens

Documentário relembra negligência de Jair Bolsonaro na Amazônia na pandemia 55y52

Notícias

O mergulho que faz bem para a cabeça 6g6k5m

Análises

Covid-19, um ano depois: o transbordamento continua 6g3h71

unidades de conservação 5p295q

Notícias

Com mudanças de última hora, projeto-bomba do Licenciamento é aprovado no Senado 4h5y5t

Salada Verde

Ação prende casal que capturou macaco-prego no Parque Nacional da Tijuca 6j353g

Reportagens

Maior área contínua de Mata Atlântica pode ser mantida com apoio do turismo 1525x

Notícias

Desmatamento em Unidades de Conservação cai 42,5% em 2024 393b2q

conservação 4y3hz

Notícias

PV questiona no STF lei estadual que flexibiliza proteção ambiental em Rondônia 172e6b

Salada Verde

Agenda do presidente definirá data de anúncio do plano de proteção à biodiversidade 1x2p2z

Reportagens

Maior área contínua de Mata Atlântica pode ser mantida com apoio do turismo 1525x

Salada Verde

Evento no RJ discute protagonismo da juventude no enfrentamento da crise climática 5o3n5g

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 2 5d6d45

  1. Maria Ludmylla diz:

    Que nessa pandemia devemos ficar todos em casa para o bem de e todos gostei dos texto.


  2. Felipe diz:

    Excelente texto. Valeu a pena ler cada palavra, foi perfeito.