Análises

O Rio de Sangue que sai do Cerrado 4p6t36

O encanto do Cerrado sobre um biólogo em formação acaba substituído pelo pesadelo de manipular carcaças de animais mortos brutalmente.

Everton Miranda ·
2 de outubro de 2013 · 12 anos atrás
 Restos de luz na noite do Cerrado. Foto: Luiz Navarro
Restos de luz na noite do Cerrado. Foto: Luiz Navarro

Dia bom. Cerrado, céu azul. Recém acordado, abro a janela para ver a música do mundo. Aqui há sempre arinhos cantando, todos, muitos, tantos, um bom ornitólogo poderia dizer um por um. Eu só ouço e acho tudo muito musical. Levanto, me alimento frugalmente, vou cuidar das coisas. Cartões de memória, pilhas, todos às dezenas, centenas, para suprir as armadilhas fotográficas.

Estou em um programa de estágio, num dos mais importantes parques de cerrado do Brasil. Serviços braçais simples, cuidar de câmeras, muita técnica e pouca biologia, mas não enjoa por que é tudo novo e eu trabalho com uma vista fenomenal para o parque. É tudo muito plano, então, uns dez metros acima da chapada já me mostram um bom pedaço desse mundão que é o Cerrado. Volta e meia am uns bichos para me distrair, araras, curicacas, tucanos e periquitos no céu o tempo todo, emas eiam pela frente do alojamento. Toda noite um cachorro do mato circula aqui, e a distância pode-se ver os veados campeiros. Na chegada, duas cotias cruzaram a frente do carro, lindas. Vim para cá lendo um artigo do George Schaller que comparava o parque ao famoso Serengueti. Se você não entende o que isso significa para um estudante de biologia, imagine que eu sou um nerd, Tolkien é correspondente de guerra,
e eu estou indo a Mordor para ajudar a destruir um Anel.

Serengueti não é aqui

“…descubro que o parque está morrendo. Caça, envenenamento e atropelamentos se intensificaram à medida que a ocupação do entorno tornou-se consolidada”

Mas os tempos aqui não são os mesmos. Chegando lá, descubro que não cabem mais as comparações com o Serengueti. Conversando descubro que o parque está morrendo. Caça, envenenamento e atropelamentos se intensificaram à medida que a ocupação do entorno tornou-se consolidada, e hoje o parque é uma sombra do que foi. Biólogos contam que num trecho percorrido regularmente onde antes observava-se cerca de quarenta veados-campeiros, hoje ele veem quatro. As profecias são de um cerrado vazio, com o vácuo evolutivo das interações ecológicas. Dispersão de sementes, herbivoria, predação e outros fatores fundamentais para manutenção de sua diversidade somem com os bichos. Hoje essa defaunação já se estabeleceu na Mata Atlântica, que lentamente se transforma num bioma a cada dia menos rico. Dormi com o amargo dessa informação.

Carcaças no carrinho

“Me assusto, cheiro de podre, sangue preto escorrendo pelo ralo, os bichos feios, estraçalhados, babando sangue, olhos leitosos, opacos.”

Acordo para o dia seguinte com a surpresa feliz de ver uma pegada de anta na soleira da porta. Chega uma estagiária correndo e diz que precisam de todo mundo. Um refrigerador descongelando ou algo assim. No refrigerador, está um queixada descongelando. Queixadas são criados em cativeiro, então poderia ser para consumo, apesar do tamanho excepcional do bicho. Mas não, o refrigerador está cheio de carcaças até a tampa. Me assusto, cheiro de podre, sangue preto escorrendo pelo ralo, os bichos feios, estraçalhados, babando sangue, olhos leitosos, opacos. Atropelamentos no entorno do parque. Explicam-me sobre o refrigerador e contam que temos que levar os bichos para outro, há uns duzentos metros dali. Luvas? Nem pensar. O chefe está com um problema na coluna. Eu sou o estagiário que se declarou muito rústico na sua carta de apresentações. Eu e o queixada, e um carrinho de mão. Pego o animal pelas pernas, jogo no carrinho, o bicho está meio duro, meio mole, devia estar descongelando lentamente há horas. Sangue viscoso, coagulado, pinga no meu pé, fezes pretas escorrendo. É só o primeiro, acumulo em cima dele uma capivara semiadulta, um veado com crânio desfigurado pelo impacto, e um tamanduá-bandeira, sem pelos em vários pontos pelo atrito com o asfalto. O medo da dor desses bichos me enfraquecer é maior do que de qualquer doença relacionada às carcaças.

Thoreau comenta as extinções dizendo que não gostaria que algum semideus tivesse, antes dele, tomado do céu as melhores estrelas para si. Ver esses bichos mortos é forte. Vim aqui esperando ver o poema perfeito, o céu estrelado. Dói onde é mais sensível. Coloco na pilha um cachorro do mato e um quati, para partir com a primeira carga do carrinho de mão. Ao chegar ao refrigerador que seria o destino dos bichos sou instruído a deixá-los no chão. Ao indagar sobre o destino final desses tristes símbolos insepulcros do descaso do Estado com a conservação da natureza, descubro que devem ficar ali para um experimento. Dieta de carnívoros, coisa muito séria pelo tom. Satisfeito com a explicação, vou buscar outra carrada de carniça. Filhotes de emas eviscerados vivos pela roda de um carro, um tatu empapado de sangue dentro de um saquinho preto, cotia, gambá, capivaras, mais duas. Uma sofreu um impacto tão grande das rodas de um carro que as unhas, pequenos cascos nessa imitação de ungulado, foram arrancadas dos dedos. Outros tatus, um tapiti, bichos ininteligíveis, estraçalhados, que não cumprem seus papéis ecológicos. O desmonte da natureza.

Descarrego e vou buscar os últimos dois volumes com as mãos. Lembro das palavras do chefe, ao terminar de me ouvir sobre o vazio das florestas atlânticas do Brasil. Me diz ele que é o mesmo destino do Cerrado: bichos poucos e arredios, extinções locais, grandes animais ausentes. Eu não quero acreditar. No refrigerador, resta um lobo-guará e um volume preto. Levo um em cada mão. O lobo-guará está dobrado, torcido, com as pernas longas destoando do círculo em que seu corpo se transformou. No caminho, seu pescoço semicongelado se estende e sua cabeça molhada de sangue toca minha perna pelo resto do caminho. Um lobo-guará, com sua postura elegante, caminhando pelos campos do Brasil central tem tanta nobreza. Seu sangue frio lambuza minha roupa, minha pele e minha mente.

Chegando ao novo refrigerador, verifico o saquinho preto, leve, quase insignificante. Abro: felpudo, cinzento, macio e infantil no meio dessa carnificina está um pequeno tamanduá-bandeira, os olhos fechados na paz da morte. A mãe pereceu sob as rodas de um carro, ele, não sei. Espero que tenha morrido sem dor. Começamos a ajeitar os bichos nas gavetas de uma geladeira velha, os pequenos apenas. Ao lado, o fundo de um refrigerador vaza água vermelha, e suponho que ali ficarão os bichos grandes.

Um saco de 100 quilos

“A forma do saco preto vai se assentando, parece familiar. Pode ser carne, um porco, um bezerro…”

Acomodados os bichos pequenos, abro o refrigerador grande. Um volume enorme dentro de um saco preto me espera lá dentro. Tentamos ajeitá-lo de qualquer jeito para permitir a acomodação dos outros animais, e logo percebemos que seria impossível, não importa a maneira ou força que façamos. Não quero pensar nesse bicho, não quero mais saber de morte por hoje. Ele pesa uns cem quilos. Com algum custo me ajudam a ajeitá-lo no carrinho, os quilos duros de bicho morto. Encaminho-o para o refrigerador quebrado, fazendo o caminho inverso, por que essa máquina ainda consegue manter uma temperatura de uns 15º C e há tempo para conseguir outro refrigerador até amanhã. Vou quicando o carrinho de mão pelo caminho, A forma do saco preto vai se assentando, parece familiar. Pode ser carne, um porco, um bezerro, um peixão. Mas parece familiar, algo naquele cheiro reflete um cheiro velho das visitas ao zoológico na minha infância.

Encosto o carrinho, ponho o bichão de pé e o viro delicadamente, equilibrando-o para a borda do refrigerador. Quando me inclino para pensar uma forma de escorregá-lo sem fazer muita força, toco o cotovelo no metal e levo um choque. Crispo as mãos no saco preto e o bicho escorrega violentamente para dentro, sem saco nem nada. O choque estava por vir: o bicho era uma onça-pintada.

Volto, triste, fatigado. Não quero saber como a onça morreu. Estou sujo de sangue e merda. Pego os restos de vísceras, os pedaços de sangue, patinhas de emas e todos os sacos pretos lambuzados para por fogo em tudo. Irônico é tentar por fogo em qualquer coisa no cerrado durante a estação úmida: impossível. Penso nos incêndios anteriores do parque, nos milhares de bichos queimados, tamanduás correndo em chamas, febre de fogo. Queimo tudo, com grande esforço. Agora eu sou cinzas, carniça, sangue e dedos queimados. Não sei mais do mundo.

Depois de um banho, sento-me para comer. O cheiro saiu do corpo, mas não da mente. Vem o recado que estão me chamando. Tinha um viveiro perto do local onde processávamos as carcaças, e é para lá que devo ir. Vou impaciente, imprudente, prestes a ser mal-educado. Abro a porta do recinto, entro e fecho. Dentro, estão três oncinhas. Louca brincadeira de um destino debochado. Correndo na minha direção, impossivelmente receptivas. Eu agacho e elas sobem em mim, umas nas outras, brincam, rolam, polpudas, quentinhas, vivas, quase sorridentes. Vejo aquilo que raramente sinto no trato pessoal com um animal: afeto. Me ensinaram que os bichos são feitos de vontade de comer e se reproduzir, e eu acho isso muito sincero e bonito. Se pensar diferente você vira um cientista meio bobo – a gente chama isso de “antropomorfizar” o bicho. Fui treinado para não fazê-lo, mas ali foi aquele afeto que se tem com criança mesmo. E penso hoje que se você perde isso é que vira um cientista meio bobo, que esqueceu a que veio e virou um burocrata. As oncinhas estavam sorrindo sim.

Volto para o alojamento. Eu não sei quando essas coisas vão mudar, mas há pressa. Conservação tem pressa. Posso ser só mais um universitário idealista, achando que o mundo vai mudar. Posso acabar em algum cargo público tentando resolver os meus problemas, mas quero mais do que isso. Eu quero escrever sobre um rio de sangue que sai do cerrado, e apodrece na lente do desenvolvimentismo, invisível e insepulto. Eu quero as oncinhas correndo livres por aí.

Enquanto termino de escrever na varanda, um par de olhos brilhantes cruza a noite, rumo a BR. Talvez pela última vez.

 

Leia também
“Hoje é dia do Cerrado, mas não vou comemorar”
O pesquisador que quer salvar animais com um celular
Onça atropelada – Tragédia anunciada no Parna do Iguaçu

 

 

 

  • Everton Miranda 4d6h1j

    Biólogo e doutorando, irador das feras soberbas da natureza, que acredita em cadeia alimentar de poder e glória.

Leia também 84q8

English
27 de maio de 2025

Two Brazilian monkeys among the world’s most endangered 6v5n2f

The newly published list of the 25 most endangered primates in the world raises alarms about the critically threatened status of the Pied Tamarin and the Caatinga Titi Monkey from Brazil

Notícias
27 de maio de 2025

Em audiência tensa no Senado, PL-bomba e Foz do Amazonas dominam a pauta 386zf

Ministra do Meio Ambiente Marina Silva deixa sessão da Comissão de Infraestrutura após discussão ríspida com parlamentares

Reportagens
27 de maio de 2025

Ajustes em trilha podem melhorar sua função de corredor ecológico no Cerrado 3w201a

Desenho estratégico de 'rodovias verdes' colabora ainda mais para conservar espécies animais e de plantas, mostra estudo

Mais de ((o))eco 6q6w3q

extinção 625o5k

Notícias

Cerca de 1.400 espécies de aves foram extintas desde o Pleistoceno – e a culpa é nossa 4h6l6q

Notícias

Tarde demais para proteger: EUA retira 23 espécies extintas da lista de proteção 3c3r1b

Notícias

Campanha recria animais extintos nunca fotografados 3k4hd

Reportagens

Estudo global aponta para o risco iminente de extinção de nada menos do que 10% da vida na Terra 4k4r2p

atropelamento 86ua

Notícias

Veja o que ocorre quando uma estrada corta uma área protegida 4p1n5b

Reportagens

Projeto de lei quer reduzir atropelamento de animais 582n6p

Notícias

Podcast: Morte por atropelamento é problema para animais ameaçados 5e3c26

Análises

Caçada e atropelada, não tem harpia que resista 5b5x56

conservação 4y3hz

Notícias

Estudo aponta multiplicação preocupante do peixe-leão no litoral brasileiro 3o3249

Notícias

Legalidade de megadesmates no Pantanal avança para julgamento no STJ 2o3q1t

Colunas

No jogo das apostas, quais influenciadores apostarão na Amazônia? 1a2m6g

Análises

Que semana, hein? 3c4zy

fauna 1xr1c

Notícias

Estudo aponta multiplicação preocupante do peixe-leão no litoral brasileiro 3o3249

Colunas

Cientistas negras viram a Maré: protagonismo e resistência na ecologia, evolução e ciências marinhas 1l5y71

Notícias

Brasil tem 34 espécies de primatas ameaçadas de extinção 3y45o

Notícias

A alta diversidade de aves em Bertioga, no litoral de SP 4o4w5q

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 1 2p2l4m

  1. Dornelles diz:

    Triste e ao mesmo tempo nos faz despertar para a urgência de se conscientizar que uma vez perdidas, as espécies não voltam. Ser Biólogo é um misto de constante decepção e satisfação.