Análises

Cuidar das onças sem perder nossa humanidade 1p671m

Conciliar a necessidade da conservação das onças – e da fauna como um todo – com as necessidades de populações carentes, e sem perder a empatia, é um desafio para os projetos

Claudia S. G. Martins · Wezddy Del Toro Orozco · Yara de Melo Barros ·
26 de julho de 2020 · 5 anos atrás
Onça pintada na Amazônia. Foto: Wezddy Del Toro Orozco.

Recentemente, o projeto Onças do Iguaçu publicou uma notícia sobre a prisão de caçadores no Parque Nacional do Iguaçu, e esse post teve muita repercussão. Por um lado, é interessante que tantas pessoas estejam dispostas e fazer uma reflexão sobre a caça na região, pois elas potencialmente podem ajudar a combater projetos de lei que liberam a caça de forma não sustentável, cobrando ações do governo e se posicionando contra legislação  lesiva ao meio ambiente e à vida silvestre. Por outro lado ficamos preocupados com a violência de algumas reações, embora acreditemos que são impulsivas e sem qualquer intenção de se concretizarem.

Nos preocupa a banalização da violência, o estímulo à intolerância, seja com bicho, seja com gente, e a perda da empatia.

Quando postamos notícias sobre caça ou abate de onças, muitas pessoas comentam que os caçadores devem ser mortos, caçados ou torturados (com variadas sugestões de métodos de tortura).

Não é nada disso que buscamos ou estimulamos. Nós exigimos que se cumpra a lei.

O objetivo de divulgar esses comportamentos é mostrar que às vezes temos um conhecimento equivocado da figura do “caçador” e, de certa forma, nos aproveitarmos da norma social (a reputação que desejamos ter, sermos aceitos, ou o constrangimento de desagradar alguém a quem respeitamos) para motivar esses caçadores a retrocederem em suas ações e comportamentos.

Acreditamos que, se esse mundo ainda tem jeito, ele a pelo resgate da empatia. Se colocar no lugar do outro e sentir sua dor, ver as coisas sob sua perspectiva.

Quando deixamos que nossa indignação descambe para a violência, abrimos uma porta para a barbárie, pois tendemos a ignorar as leis e a querer “justiça” a qualquer custo, e damos uma paulada certeira na empatia e na nossa humanidade. Ou seja, queremos apagar um incêndio, mas colocamos nele mais lenha. Não funciona.

Um caminho é canalizar a indignação para gerar mudanças benéficas, não mais sofrimento, e a empatia pode nos ajudar no processo de conectar pessoas para somar esforços nessa tarefa.

Sensibilidade para avaliar caso a caso

Crânios de onça e jacaré. Foto: Wezddy Del Toro Orozco.

Na região do Parque Nacional do Iguaçu a caça não é de subsistência, é “tradição”. Sim, tradição é uma palavra bacaninha que pode ser utilizada para legitimar uma série de práticas questionáveis, não? Joga um “manto de legalidade” sobre muitos crimes.

Muitos caçadores da região não têm problema financeiro algum, apenas usam a caça como esporte, e acham legal servir uma paca para os amigos. ar o final de semana caçando no Parque Nacional é um entretenimento.

Em 2019, a equipe de Proteção do Parque Nacional do Iguaçu, em conjunto com a Polícia Ambiental, encontrou, dentro do parque, 24 estruturas de caça, sendo 4 acampamentos. Na ocasião, 2 pessoas foram presas. Em 2020 esse número aumentou: de janeiro a junho foram já foram encontradas 85 estruturas de caça, sendo 11 acampamentos. Nove pessoas foram presas.

Considerando o cenário e particularidades locais, o projeto Onças do Iguaçu se posiciona abertamente contra a caça e procura mudar a percepção das pessoas e conseguir uma tão necessária mudança de hábitos.

Armadilha tipo arataca. Foto: Cláudia B. Campos.

Já na Amazônia, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, e na Caatinga, o programa Amigos da Onça trabalham em uma realidade diferente, com populações humanas que tendem a estar dentro da faixa de renda mais baixa, são dependentes dos recursos naturais (flora e fauna), têm reduzida assistência técnica e fraca presença da istração pública. Nessas regiões, a maior parte da caça é de subsistência, e as populações locais, muitas vezes sem o a outros recursos, dependem dela como fonte de proteína para alimentação.

A maior parte das pessoas que criam animais domésticos são pequenos produtores, e os animais criados, mais do que provedores de carne para acompanhar o arroz e feijão de cada dia, são poupança para alguma emergência familiar. Então, a perda de um animal representa um desfalque considerável no patrimônio de uma família. Estas perdas podem acontecer por picada de cobra, ataque de porco ou cachorro doméstico, roubo, problemas relacionados ao parto e ataque de onça também. Com um manejo das criações sendo feito de forma extensiva, o controle dos rebanhos é frágil. Com a vulnerabilidade socioeconômica dos criadores, as estruturas de pernoite também não garantem a segurança dos animais.

Infelizmente, muitos criadores ainda colocam na conta da onça suas perdas, e é comum o abate de onças (pardas e pintadas) acontecer por retaliação à predação. Na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no Amazonas, aproximadamente 70 onças-pintadas são mortas por pessoas todos os anos, segundo uma estimativa realizada por Emiliano Ramalho em 2012. Já no Boqueirão da Onça, em plena Caatinga baiana, dados preliminares obtidos a partir de entrevistas informais com residentes sugerem que pelo menos 25 onças-pardas foram abatidas entre 2005 e 2010, por retaliação à predação de gado (bovinos) ou criação (caprinos e ovinos), ou por caça furtiva. Só em 2017 as carcaças de quatro onças-pardas e uma onça-pintada foram encontradas na região, depois de uma informação de um residente.

Na região do Iguaçu, foi feita, com base nas entrevistas, uma estimativa conservadora do número de onças-pintadas abatidas. Nos últimos 40 anos (até 2017) teriam sido mortas na região 74 onças-pintadas e duas onças pardas. Desde 2017 tivemos a confirmação de duas onças-pardas abatidas e nenhuma onça-pintada (o que não significa que não tenham ocorrido abates).

Carcaça de onça-pintada abatida na Caatinga. Foto: Cláudia B. Campos.

Nas comunidades rurais da Amazônia e da Caatinga as pessoas estão mais expostas no dia a dia às interações com animais silvestres. incluindo às onças, e seu abate pode ter motivações adicionais ao fator econômico, como por exemplo a necessidade de alimento, o medo, a norma social, a percepção das pessoas, entre outras.

Na Caatinga, a carne de animais silvestres também é fonte vital de proteína, uma vez que peixe e outras fontes são limitadas, principalmente nas épocas de estiagem, quando a produção agrícola é quase inviável e os animais domésticos, “criações”, têm mais privações de pasto e água. Estudos preliminares feitos na região do Parque Nacional do Catimbau mostraram que a criação e implementação de políticas públicas, como as de transferência de renda, aposentadoria rural e bolsa-família, deixaram as famílias menos dependentes dos recursos naturais, em teoria dispensando a atividade da caça para suprir a necessidade de proteína animal.

Estudos conduzidos nos estados do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba indicaram que não existe uma preocupação dos caçadores com o status de conservação das espécies; não necessariamente a caça é para suprir uma necessidade imediata de carne, mas para venda, ou oferta em reconhecimento de um favor ou serviço prestado, ou resulta de uma preferência cultural pelo sabor da carne de caça; a maior parte da caça vem de áreas próximas dos agregados populacionais ou usando aberturas feitas na caatinga, porém, a facilidade de conseguir armas mais sofisticadas e de adquirir motorizada tem tornado os animais mais susceptíveis à caça; até onça-pintada e onça-parda aparecem na lista de animais indicados como abatidos para consumo alimentar.

Animais e armas apreendidos no Parque Nacional do Iguaçu. Foto: Arquivo PNI.
“Quem trabalha com conservação precisa acreditar que uma mudança de comportamento pode existir.”

O programa Amigos da Onça trabalha há oito anos no Boqueirão da Onça, em um cenário de um dos mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano do Nordeste do Brasil. É convicção da equipe que legal e ético devem andar de mãos dadas, e a punição ou ameaça por advertência cumprem seu papel vital, mas é inegável a importância de motivar mudanças de comportamento, ainda mais em regiões extensas onde fiscalizar e monitorar exigiria recursos humanos e financeiros muito elevados.

Os projetos de conservação de onças e coexistência seres humanos-vida silvestre buscam, através de questionários, entender as motivações para a caça. Esse conhecimento deve pesar-nos com a responsabilidade de promover mudanças que favoreçam ambos os lados do conflito, e não nos imbuir de uma força julgadora que pode solucionar um problema imediato, mas de forma superficial e não duradoura. A ideia é construir soluções junto com as comunidades.

Afinal, lutar contra a caça na Amazônia e na Caatinga, locais onde ela representa uma importante fonte de subsistência, sem oferecer alternativas, pode significar condenar populações humanas à fome. Essa luta não pode nem deve ser uma estratégia unidirecional de comando e controle. É fundamental incentivar e promover um diálogo efetivo entre os moradores das comunidades e outros grupos de interesse, buscando uma troca de conhecimentos e experiências com o intuito de avançar na construção de um plano de manejo participativo adequado para a caça o qual contemple práticas sustentáveis.

Pegadas de onça embaixo da casa. Foto: Wezddy Del Toro Orozco.

Isso ajuda inclusive a envolver as pessoas dessas regiões com a conservação das onças.

Empatia e sensibilidade são armas poderosas para a conservação. Conciliar a necessidade da conservação das onças – e da fauna como um todo – com as necessidades de populações carentes, e sem perder a empatia, é um desafio para os projetos.

Quem trabalha com conservação precisa acreditar que uma mudança de comportamento pode existir, e esta somente pode ser alcançada através de diálogo efetivo e de uma construção coletiva com comunidades locais.

Precisamos acreditar que nosso trabalho pode “tocar o coração para ensinar a mente”, assim cada vez mais pessoas podem ser sensibilizadas e se tornarem defensoras “de tudo o que precisa ser salvo”.

Em tempos de pandemia, onde empregos e meios de vida vêm sendo perdidos, fica cada vez mais difícil coibir a caça. É importante buscar e garantir formas alternativas de renda antes de pedir que as pessoas parem de caçar.

Difícil? Sim, muito.

Por isso sempre dizemos que precisamos escolher cuidadosamente nossas batalhas, para que nesse processo não sejam perdidas nem onças, nem pessoas, nem nossa humanidade ou empatia.

 

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

Leia Também 

O que fazer com a caça no Brasil?

Procura chinesa movimenta caça de onça-pintada e outros felinos nas Américas

MPF denuncia grupo que matou mais de mil onças-pintadas no Acre

 

  • Claudia S. G. Martins 5nw2r

    Engenheira agrônoma e ecóloga. Pesquisadora nas temáticas desertificação em áreas rurais e vulnerabilidade aos conflitos humanos-fauna silvestre, no semiárido brasileiro.

  • Wezddy Del Toro Orozco 4w3j62

    Cláudia Martins (Univasf) é engenheira agrônoma e pesquisadora do Instituto Pró-Carnívoros e do Programa Amigos da Onça. Wezd...

  • Yara de Melo Barros 5y3k30

    Doutora em zoologia, membro do SG Brasil, coordenadora do Projeto Onças do Iguaçu e pesquisadora Associada do Instituto Pró Carnívoros.

Leia também 84q8

Salada Verde
1 de julho de 2019

MPF denuncia grupo que matou mais de mil onças-pintadas no Acre 6u4f5

Justiça Federal já aceitou a denúncia contra caçadores ilegais que atuavam no interior do estado. Grupo responderá por caça e uso de armas de fogo sem permissão

Análises
14 de junho de 2020

Procura chinesa movimenta caça de onça-pintada e outros felinos nas Américas 5a3n5v

Comércio ilegal de felinos movimenta a medicina milenar chinesa. Até quando a China, a despeito de preservar sua cultura, colocará em risco a biodiversidade de outros continentes?

Análises
15 de julho de 2019

O que fazer com a caça no Brasil? 1a1641

A gestão da fauna silvestre e a caça precisam ser regulamentadas e adaptadas, no mínimo, com base nas características ecológicas e culturais de cada bioma

Mais de ((o))eco 6q6w3q

onça pintada 2x5r4j

Análises

O que cai do mundo não volta mais 47361

Salada Verde

Assassinato de onça-pintada será investigado pela fiscalização federal 3l4w5s

Colunas

A pantera de Pembrokeshire 3o6wd

Notícias

Turismo de base comunitária como ferramenta de conservação de onças-pintadas 12b22

conservação 4y3hz

Reportagens

Maior área contínua de Mata Atlântica pode ser mantida com apoio do turismo 1525x

Salada Verde

Evento no RJ discute protagonismo da juventude no enfrentamento da crise climática 5o3n5g

Reportagens

Polícia do Amazonas aperta o cerco contra a exploração de animais silvestres 4b6y5s

Colunas

Leão XIV no cenário climático 711a2i

manejo de fauna 591854

Reportagens

Família de micos-leões-pretos recebe um novo lar para evitar extinção local 3t910

Colunas

Conexão de afeto 584q73

Colunas

A arte da conservação: tecendo caminhos para a coexistência 546o3h

Colunas

Espécies carismáticas: muito além da fama e beleza u401l

espécies ameaçadas 671k1r

Colunas

Marketing não é capaz de reviver espécies extintas 6s3o4w

Colunas

Os Crocodilos Perdidos da Amazônia 4s4y4u

Notícias

Animais e madeiras confiscados em megaoperação mundial anti-tráfico 3g243

Colunas

Massacre e Renascimento na Ilha das Aves 486i7

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 7 3z1l51

  1. Carlos Vitor diz:

    A grande incoerência do texto é no começo dizer que só querem a lei cumprida, pra depois falar que tem que ser caso a caso.


  2. Jaco diz:

    Os caçadores de animais silvestres devem ser condenados e presos, pois nos tempos atuais isso é injustificável.


  3. Leo Mohr diz:

    "Afinal, lutar contra a caça na Amazônia e na Caatinga, locais onde ela representa uma importante fonte de subsistência, sem oferecer alternativas, pode significar condenar populações humanas à fome. ". Eu já andei bastante pela Amazônia em ditas "comunidades tradicionais" em trabalho e nunca vi uma única família que não tenha criação de porcos, galinhas, bois, patos ou até búfalos, ou tenha o a tal carne por terceiros por meio de escambo. Isso sem falar na pesca com redes, muitas vezes feitas em bocas de rios ou com malhas proibidas. Aliás, uma única vez vi, nos confins do Tapajós (pra lá de Jutaí) um caso de caça abrangido pela lei (saciar a sua fome ou de sua família), em uma abordagem de barco, onde havia uma anta despedaçada dentro dum cesto fétido para alimentar uma família que levava um doente (em um barco acabado) para algum lugar onde pudesse ter o mínimo de atendimento médico. Qualquer trabalho sério (com metodologia científica, não achismos ou entrevistas com quem caça, do tipo "tem anta por aqui?" ou "algum bicho já não existe mais?") já provou que há defaunação e extinções locais ao redor de pessoas que caçam pela "tradição", sob o manto da necessidade, que foi o único excludente estabelecido pela lei nesse sentido.


  4. Priscila diz:

    Quem faz isso com os animais selvagens não são dignos de confiança nenhuma.Se eu não tivesse família,viraria uma JUSTICEIRA ,igual aquele filme O JUSTICEIRO,pra quem assiatiu sabe como é…eu viraria uma justiceira e mataria esses caçadores 😡;pois a justiça ambiental infelizmente não funcione.


    1. Mariska diz:

      Eu também… não me tornaria menos humana se matasse todos esses desgraçados…
      No meu alter ego sou uma onça com poderes além da arma de fogo e mato todos eles…
      Não merecem viver nesse planeta.


  5. Fernando Tortato diz:

    Parabéns pelo texto! Muito legal!


  6. José Truda diz:

    Apesar do lindo trabalho dos autores, esse mimimi sociocoisista “politicamente correto” a favor de caçadores “coitadinhos” é absolutamente injustificável. É a mesma ideologia que tenta varrer pra baixo do tapete o esvaziamento da fauna das florestas pela “caça de subsistência” absurdamente impune e descontrolada. Tem parar de matar fauna SIM.