Análises

Greenwashing e os desafios da restauração ecológica e da Sustentabilidade Corporativa 3q21o

Exigências de métodos auditáveis, indicadores científicos confiáveis e certificações rigorosas precisaram ser implantadas, o que tornará imperativo que as empresas adotem práticas socioambientais verdadeiras e eficazes

O mundo corporativo está ando por rápidas transformações rumo à adoção de práticas alinhadas aos critérios ESG (ambientais, sociais e de governança). Estes critérios representam um conjunto de práticas que orientam as empresas a atuarem de forma mais sustentável, ética e transparente. Parte essencial desse processo envolve o compromisso com uma comunicação clara e responsável, tanto com os consumidores quanto com a sociedade em geral. Mais do que construir e promover uma imagem pública e positiva de responsabilidade ambiental, é fundamental que as ações corporativas sejam coerentes, mensuráveis e baseadas em impactos reais, evitando práticas de greenwashing e contribuindo de forma concreta para a sustentabilidade.

Entretanto, muitas vezes, as corporações apresentam essas iniciativas de forma, enganosa, exagerada ou desprovida de fundamentos técnicos, configurando o que se denomina greenwashing, termo que combina “green” (verde, associado à sustentabilidade) e “whitewashing” (dissimulação ou encobrimento de práticas inadequadas). Frequentemente, o greenwashing é acompanhado de estratégias de manipulação cognitiva, com o objetivo de influenciar ou controlar crenças, comportamentos e percepções individuais, o que é conhecido como brainwashing.

Essas práticas são altamente prejudiciais e exigem vigilância constante da sociedade civil e dos órgãos reguladores. A implementação de mecanismos rigorosos de controle e punição são essenciais, dada a gravidade dos impactos envolvidos. No contexto ambiental, essas atitudes podem gerar riscos ainda maiores, como no caso de alegações de que alimentos contaminados por poluentes são seguros para o consumo ou que determinadas ações que afetam a produção de água e alimentos são ocultadas sob discursos de responsabilidade ambiental e seguridade alimentar. Outro exemplo recorrente é a afirmação de que o meio ambiente é prioridade de governos e mesmo empresas, enquanto áreas naturais seguem sendo degradadas ou utilizadas de forma predatória.

Uma forma sutil de greenwashing ocorre na área da restauração ambiental. Existem diferentes formas de restauração ambiental, como a reabilitação, a recuperação e a restauração ecológica. Cada uma delas apresenta objetivos e abordagens específicas. A reabilitação envolve ações para melhorar as condições de um ambiente degradado, mas sem necessariamente restaurar todas as funções ecológicas originais. A restauração ecológica, por sua vez, busca recuperar as funções ecossistêmicas, promover a biodiversidade e restabelecer o equilíbrio ambiental de forma planejada e sustentável, apoiando-se na resiliência natural e uso de espécies nativas do local. Em resumo, enquanto a reabilitação melhora o ambiente de forma mais superficial e pontual, a restauração ecológica visa uma recuperação completa e integrada do ecossistema promovendo a biodiversidade, a conectividade ecológica e ambiental e a diversidade funcional.

Considerada como uma das soluções mais importantes para garantir o futuro da humanidade e do planeta, a restauração ecológica visa recuperar ecossistemas degradados, restaurando suas funções naturais, promovendo a conservação da biodiversidade e contribuindo para o combate às mudanças climáticas e à degradação ambiental. Ambientes degradados tornam-se disfuncionais e ameaçam a segurança hídrica, alimentar, energética e até mesmo a saúde pública, tornando-se focos potenciais de doenças zoonóticas emergentes. Portanto, esse é um assunto estratégico para a sociedade como um todo e se a restauração não for feita de forma adequada ela afeta várias espécies, inclusive, a humana.

Quando realizada corretamente, a restauração ecológica favorece processos ecossistêmicos fundamentais como a polinização, a fertilidade do solo, a produção sustentável de alimentos variados e de boa qualidade, e a conservação da fauna nativa associada. Além disso, áreas devidamente restauradas desempenham um papel essencial na produção de água limpa e no funcionamento dos ecossistemas, operando de forma contínua e precisa, como um relógio que nunca para. Também contribuem para a  retomada de valores culturais, estéticos e sociais das comunidades locais, fortalecendo vínculos com o território e modos de vida tradicionais.

Contudo, restaurar de maneira adequada exige conhecimento científico robusto. A eficácia da restauração ecológica depende da escolha correta das espécies para cada tipo de habitat, o que requer um entendimento profundo do ambiente. O uso de espécies exóticas – aquelas que não pertencem ao ecossistema local – não é considerada como restauração ecológica. Espécies não-nativas podem introduzir doenças, competir por recursos como água e nutrientes, ou até mesmo prejudicar os polinizadores locais. Plantas como a árvore Neem, o eucalipto, a leucena e algumas espécies de pinheiros, por exemplo, podem liberar substâncias químicas que envenenam o solo e dificultam o desenvolvimento de outras plantas, além de aumentarem o risco de incêndios florestais. Um exemplo é a espécie exótica conhecida como teca, que, além de demandar grande quantidade de água para seu crescimento, possui folhas cuja queda inibe a germinação e o desenvolvimento de outras espécies, causando impactos significativos no meio ambiente e na biodiversidade.

Outro problema é o do plantio de espécies de árvores (mesmo que nativas) onde elas nunca ocorreram naturalmente, como nos campos, no cerrado e mesmo nas formações arbustivas da Caatinga. Essas arborizações (afforestation do inglês) modificam profundamente o funcionamento e estabilidade do ambiente e, portanto, não podem ser consideradas benéficas sob a ótica da biodiversidade. Quando plantadas em larga escala, podem homogeneizar a paisagem e até influenciar o microclima regional e os serviços ecossistêmicos. Em última análise, a introdução dessas espécies em larga escala transforma e simplifica o ambiente natural, criando um novo ecossistema, agora empobrecido e desequilibrado. Assim, uma análise detalhada evidencia que pode representar mais um impacto, e portanto, o ivo ambiental não é resolvido.

No entanto, a prática de usar espécies exóticas na restauração de áreas degradadas é frequentemente adotada por muitas empresas de diversos setores e, até mesmo por programas governamentais, que  têm registrado  e computado esses plantios como “restauração ambiental”. Considerar e divulgar que áreas restauradas com espécies exóticas seja o suficiente para o retorno do funcionamento dos ecossistemas, conectividade ambiental e retorno da biodiversidade é um claro exemplo de greenwashing. Embora essas iniciativas possam ser respostas a exigências de órgãos ambientais, elas não recuperam a biodiversidade e, portanto, o ivo ambiental persiste. A divulgação de áreas “restauradas” de maneira simplista, como se estivessem totalmente recuperadas, engana o público, uma vez que a restauração das funcionalidades do ecossistema e o retorno das espécies nativas requer mais do que apenas o plantio de árvores. Ao mesmo tempo, essa narrativa  negligência políticas públicas de conservação e desvia recursos de iniciativas que poderiam ser utilizadas para promover contribuições efetivas à restauração ecológica, como o fortalecimento de viveiros de espécies nativas, avaliação da resiliência da fauna e da diversidade funcional em sistemas restabelecidos, programas de monitoramento participativo e investimento em ciência e inovação, por exemplo.

Essa prática é um exemplo de greenwashing, onde o público é levado a acreditar que soluções superficiais resolvem problemas ambientais complexos. Isso se torna ainda mais evidente à medida que a sociedade, em geral, desconhece os critérios científicos que determinam o sucesso de uma restauração fundamentada no retorno da biodiversidade, da ciclagem dos nutrientes, dos polinizadores nativos, na funcionalidade ecológica, dentre outros. Logo, informar o público sobre esses critérios científicos é essencial para que ele possa identificar práticas legítimas e resistir a narrativas enganosas. A comunicação e conscientização fortalecem o controle social e a responsabilização de empresas e governos, contribuindo para um debate público mais qualificado sobre conservação ambiental. No entanto, essa conscientização pública, os incentivos e os mecanismos de fiscalização e certificação já estão se tornando cada vez mais rigorosos. O novo marco global para a biodiversidade, estabelecido pelo Acordo de Kunming-Montreal da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) da ONU, visa combater práticas de propaganda enganosa no setor ambiental.

A redução do greenwashing em iniciativas de restauração ecológica é um processo complexo que exige a articulação de múltiplos setores. Essa transição deve ser baseada em uma ampla co-construção de mecanismos eficazes tanto de incentivo quanto de regulação e controle, em níveis nacional e internacional. Um dos caminhos promissores é o desenvolvimento e a adoção de normas técnicas e certificações confiáveis, como aquelas elaboradas pela ISO (por exemplo, as normas associadas a ISO da biodiversidade, atualmente em construção), que podem contribuir para a padronização e a transparência dos processos de restauração. No entanto, a efetividade dessas ações depende também da implementação de outras medidas e participação de diversos atores, como de sistemas de monitoramento participativo que envolvam, de forma ativa, não apenas técnicos e cientistas, mas também comunidades locais e organizações da sociedade civil. A inclusão desses atores amplia a legitimidade social dos projetos, viabiliza o acompanhamento contínuo dos resultados e fortalece a fiscalização coletiva sobre práticas que se apresentam como sustentáveis, mas que nem sempre o são.

Nos próximos anos, espera-se que empresas sejam cada vez mais incentivadas – ou até legalmente obrigadas – a comprovar, por meio de certificações ambientais reconhecidas, os impactos reais de suas ações sobre o meio ambiente. Isso inclui não apenas apresentar indicadores gerais de sustentabilidade, mas também demonstrar dados sobre a qualidade e a efetividade das áreas restauradas, sobretudo quando associadas à produção de bens voltados à exportação, o que envolve setores estratégicos para a economia brasileira.

Exigências de métodos auditáveis, indicadores científicos confiáveis e certificações rigorosas precisaram ser implantadas, o que tornará imperativo que as empresas adotem práticas socioambientais verdadeiras e eficazes. O Brasil tem condições de ser um exemplo mundial na estruturação de cadeias de valores de biodiversidade no contexto da restauração ecológica, mas para isso é fundamental evitar práticas de greenwashing e adotar políticas baseadas na ciência. Assim, será possível ocupar os espaços estratégicos que estão se abrindo no mercado ambiental internacional para as empresas não praticantes do greenwashing. Afinal, plantar árvores não significa, necessariamente, preservar ecossistemas, talvez, o momento é de trocar discursos verdes por ações científicas concretas na proteção e manutenção dos ecossistemas e seus processos.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Geraldo Fernandes 1w30p

    Centro de Conhecimento em Biodiversidade, Universidade Federal de Minas Gerais

  • Stephannie Fernandes 6p1mt

    Florida International University, Florida, EUA

  • Domingos Rodrigues 505j1b

    Centro de Conhecimento em Biodiversidade, Universidade Federal de Mato Grosso

  • Fábio Roque 3q6u30

    Professor Titular na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Brasil), com Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq nível 1B, e membro do Centro de Ciência Ambiental e Sustentabilidade Tropical (TESS), na James Cook University, em Cairns, Austrália.

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