Análises

O desmantelamento de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável 2m204

Intensifica-se a orquestração de ações para que o Virola-Jatobá em pelos mesmos processos que resultaram na degradação e concentração fundiária observada no entorno

Roberto Porro ·
11 de maio de 2022 · 3 anos atrás

Em 21 de setembro último, quando foi comemorado o Dia da Árvore, a Embrapa lançou o livro “Árvores do Manejo Florestal no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Virola-Jatobá”. A publicação resultou de esforço conjunto de pesquisadores, técnicos e de agricultores no município de Anapu que vinham manejando a floresta em assentamento de reforma agrária com características diferenciadas, priorizando a conservação ambiental na região da rodovia Transamazônica, no estado do Pará. 

A satisfação de ver materializado um produto voltado ao fortalecimento de iniciativas sustentáveis foi ofuscada, contudo, por sentimentos de frustração e revolta decorrentes da descontinuidade forçada da iniciativa local, devido à incapacidade do poder público em coibir a ação daqueles que se apropriam indevidamente das florestas e terras da Amazônia. 

Com efeito, o que se constata em Anapu a partir de 2017 é o iminente colapso do PDS enquanto modalidade de ordenamento fundiário que promove a tão necessária integração de objetivos sociais e ambientais.

Duas décadas atrás, os PDS foram criados como assentamentos de reforma agrária nos quais vastas áreas de floresta seriam manejadas de forma sustentável sob o domínio comum de agricultores, que recebem o usufruto de lotes de 20 hectares para seus cultivos. Essa proposta contou com o decisivo apoio da irmã Dorothy Stang, e resultou na criação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Virola-Jatobá e Esperança, em Anapu. De acordo com o Incra, 108 PDS foram criados em toda a Amazônia, para o assentamento de mais de 22 mil famílias em cerca de 3,1 milhão de hectares. Na maioria dessas áreas, contudo, projetos sustentáveis não foram incentivados, e o uso da terra pouco se diferenciou do ocorrido nos mais de 2.900 assentamentos convencionais da Amazônia, com pronunciado desmatamento nos anos que se seguiram à criação dos mesmos. Ainda mais grave, constatou-se na maior parte dos PDS a tendência de progressiva apropriação de terras por indivíduos que não são beneficiários da reforma agrária, visando a especulação e retirada ilegal de madeira. 

O PDS Virola-Jatobá não apresentava esse roteiro. Mesmo ados quinze anos do início do assentamento, mais de 95% de sua área continuava sob cobertura florestal até 2016. Dez anos antes, uma proposta de manejo florestal havia sido iniciada, com treinamentos e um contrato com empresa privada que vigorou até 2013, quando uma normativa do Incra ou a vedar a atuação direta de empresas florestais em assentamentos. 

A partir de 2014, as famílias assentadas buscaram apoio para restabelecer o manejo florestal por meio de suas próprias organizações (Associação AVJ e Cooperativa COOPAF), o que ocorreu entre 2015 e 2017, período em que foram realizadas as atividades de campo que resultaram na publicação lançada pela Embrapa.

Porém, no final daquele ano, intensifica-se a orquestração de ações visando desestabilizar a proposta dos PDS em Anapu, para que essas terras em pelos mesmos processos que resultaram na degradação e concentração fundiária observada no entorno. ados mais de quatro anos sem uma ação efetiva do poder público, o assentamento tem sido gradualmente ocupado por pessoas que adquirem ilegalmente os lotes familiares de 20 hectares, ou invadem a reserva legal. Com pretensões de domínio sobre áreas maiores, investem na derrubada de florestas. Estes ocupantes não aceitam as normas do PDS, sendo apoiados e financiados por madeireiros ilegais e especuladores que lucram com a venda de terras públicas. Tais invasões resultaram em desmatamento que já supera 2.500 hectares, inviabilizando novos licenciamentos para a continuidade do manejo florestal comunitário.

Ação realizada em 2016. Foto – Roberto Porro/Ambrapa

Como se não bastasse terem sido tolhidas do capital natural que contribuía significativamente para seu sustento, as famílias do PDS Virola-Jatobá que defendem a legalidade, por meio de sua associação, foram recentemente autuadas pelos órgãos ambientais que as responsabilizou pelo desmatamento registrado, com multas que superam os R$2,5 milhões! A despeito de inúmeras denúncias, documentos e tratativas junto a órgãos públicos ao longo desse período, procedimentos kafkianos aprofundam o paradoxo da situação e agravam o sentimento de impotência frente a tamanho disparate.  

 

Fatos observados no PDS Virola-Jatobá ao longo destas duas décadas demonstram assim os efeitos de perturbações extremas em domínios sociais e ecológicos interconectados. Nesses casos, quando um limiar é atingido em sistemas sociais com fortes assimetrias, restringindo a ação de segmentos vulneráveis, poucas condições restam para mudanças adaptativas no mesmo regime. Mudanças drásticas am a comprometer o bem-estar humano e a provisão de serviços ecossistêmicos. Nesse caso, a essência de uma modalidade fundiária como o PDS, que combina justiça social e conservação ambiental, tende a se esvair, dando lugar a um novo regime com maior restrição nas opções e inovações socioecológicas, refletindo retrocessos recentemente vivenciados.

Para uma análise detalhada sobre a situação no PDS Virola-Jatobá: Clique aqui.  

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Roberto Porro 3m5k6z

    Pesquisador da Embrapa. Agrônomo de formação, mestre em Conservação e Desenvolvimento pelo Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade da Flórida (1997) e doutor em Antropologia Cultural pela Universidade da Flórida (2002)

Leia também 84q8

Reportagens
28 de abril de 2011

Envolver comunidades é desafio do manejo f4y1t

Com maior apoio do governo, projetos de exploração florestal na Amazônia podem ser gerenciados por comunidades extrativistas.

Notícias
8 de agosto de 2013

Incra promete reduzir desmatamento em assentamentos 14b17

Autarquia quer deixar para traz o título de maior desmatador da Amazônia. Acordo firmado com o Ministério Público foi assinado hoje.

Análises
5 de janeiro de 2022

O que as cercas de acapu ensinam sobre o desmatamento na Amazônia? 5s3q4p

O status de “em perigo” muito pouco ou nada afetou a extração ilegal do acapu por aqueles que comercializam estacas e que desafiam a legalidade do uso de recursos florestais na Amazônia

Mais de ((o))eco 6q6w3q

grilagem de terras 295f1t

Notícias

61% das Florestas Públicas ainda não destinadas na Amazônia estão registradas como privadas 3w172v

Notícias

Câmara aprova projeto que proíbe auxílios, crédito e cargos a participantes de ocupações 2o2b2m

Salada Verde

Tio de Damares Alves cria gado em terras da União na Amazônia 134u2u

Notícias

Polícia prende pistoleiros que atacavam comunidades tradicionais no extremo-oeste da Bahia 5y4a5

desmatamento 4y695i

Análises

O PL da Devastação e a falsa promessa do progresso 155t47

Notícias

Em audiência tensa no Senado, PL-bomba e Foz do Amazonas dominam a pauta 386zf

Notícias

Brasil tem 34 espécies de primatas ameaçadas de extinção 3y45o

Notícias

Legalidade de megadesmates no Pantanal avança para julgamento no STJ 2o3q1t

amazônia ia40

Notícias

Onda de apoio a Marina Silva após ataques sofridos no Senado une ministras, governadoras e sociedade civil 3h52q

Notícias

Em audiência tensa no Senado, PL-bomba e Foz do Amazonas dominam a pauta 386zf

Notícias

Brasil tem 34 espécies de primatas ameaçadas de extinção 3y45o

Colunas

No jogo das apostas, quais influenciadores apostarão na Amazônia? 1a2m6g

Capa 5w1yx

Fotografia

A Catedral de Mármore 4f25l

Fotografia

Um monte entre as nuvens 623h3o

Fotografia

Uma praia sem mar 1v4hp

Fotografia

Preikestolen, o Púlpito de Pedra 2v645l

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.