Análises

O fracasso é a alma do negócio 633h5p

Um rápido exame dos documentos que estão sendo discutidos, neste momento, na 15ª COP, em Montreal, também ajuda a confirmar a impressão de que, daqui para frente, nada vai mudar e os objetivos da convenção continuarão a ser apenas um conjunto de boas intenções

Nurit Bensusan ·
14 de dezembro de 2022 · 2 anos atrás
  • Publicado originalmente por Instituto Socioambiental (ISA) 4z2a68

O ano em que a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) chega aos seus 30 anos deveria conduzir a um momento de reflexão. Uma convenção balzaquiana deveria olhar para si mesma e avaliar por que tem tido tanta dificuldade em cumprir seus objetivos. Mas será que essa primeira impressão, talvez apressada, corresponde à realidade?  Seus objetivos, de fato, não são cumpridos?

Os objetivos maiores da CDB, explícitos em seu texto original, são a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e a repartição justa e equitativa dos seus benefícios derivados. Ora, não é preciso muito para constatar que esses objetivos estão longe de ser alcançados. A perda de diversidade biológica em todo o planeta continua crescendo, seu uso sustentável é uma miragem e a repartição de benefícios, uma exceção. Vale lembrar ainda que o tratado fracassou em implementar todas as 20 metas que definiu para si mesma entre 2011 e 2020.

Um rápido exame dos documentos que estão sendo discutidos, neste momento, na 15ª Conferência das Partes (COP 15), em Montreal, no Canadá, também ajuda a confirmar a impressão de que, daqui para frente, nada vai mudar e os objetivos da convenção continuarão a ser apenas um conjunto de boas intenções. A COP 15, para além de debater os temas habituais ligados à CDB, está discutindo um novo Marco Global para a Biodiversidade e se debruçando sobre temas que emergiram, nos últimos anos, em função do desenvolvimento tecnológico, como a biologia sintética e as sequências digitais (informações genéticas armazenadas sob forma de sequências digitais).

Se, nem no presente nem no futuro desse tratado internacional, é possível vislumbrar dúvidas para nossa primeira impressão – a de que a CDB deveria estar examinando sua baixa taxa de implementação e seu fracasso em alcançar suas metas – talvez seja possível encontrar algum indício no ado, nas origens da ideia de biodiversidade e de sua convenção.

O conceito de biodiversidade 6f3h3z

Em algum momento da década de 1980, ganhou tração a ideia de ampliar o conceito de diversidade biológica, antes compreendido como diversidade de espécies e, algumas vezes, também como a variedade existente entre os indivíduos de uma mesma espécie, para todas as dimensões da diversidade existente no planeta. Em 1992, na Rio-92, a Convenção sobre a Diversidade Biológica já tratou biodiversidade quase como um sinônimo de natureza. Quase… 

E quase não porque a biodiversidade abarcaria, como muitos defendem, apenas a “parte viva da natureza”, mas quase porque o conceito de biodiversidade é uma tentativa reducionista de lidar com a natureza, uma tentativa de dar uma aparência científica, mensurável, istrável, compreensível para todo esse mundo complexo que nos cerca e no qual estamos imersos até o último pelinho microscópico das bactérias que habitam o nosso corpo. 

É possível que isso tenha acontecido – adotar o termo biodiversidade para se referir à natureza – por boa-fé da parte dos cientistas. Mas não é possível ignorar algumas consequências e outros elementos que estão na origem dessa substituição. Uma das consequências é a perda do valor afetivo que o termo “natureza” desperta nas pessoas em geral, que em sua grande maioria sequer sabe o que é biodiversidade. Assim, a perda de biodiversidade causa menos angústia do que a degradação da natureza.

Conservação e colonialismo 25254p

Há, ainda, diversos outros elementos importantes para pensarmos nos sucessivos fracassos da CDB e o que significa o uso do termo “biodiversidade”. Um deles é o que representa todo o aparato de conservação da biodiversidade, que vem de antes da convenção e ganhou força com ela, diante das formas tradicionais e históricas de povos indígenas e comunidades locais de compartilhar o mundo com os diversos seres que o habitam. 

Após invadir, destruir, predar e dominar boa parte do planeta, o mundo eurocêntrico, montado no colonialismo que emergiu com a invasão da América, percebe que as áreas naturais têm importância e não serão preservadas de sua própria sanha predatória. Nesse momento, emerge a ideia de proteger áreas para manter, em primeiro lugar, recursos naturais e belas paisagens e, mais tarde, a biodiversidade. E a maneira colonial de fazer isso é alijar aqueles que poderiam ajudar a manter essas áreas, como povos indígenas e comunidades locais, e substituí-los por um aparato tecnocrático, cujo objetivo é preservar a biodiversidade.

Ora, não é difícil perceber que se trata de um empreendimento fadado ao fracasso. Por um lado, a simplificação do mundo na ideia de biodiversidade faz sempre com que o aparato tecnocrático seja insuficiente, incompleto e equivocado. Por outro, não é possível, de fato, fazer frente à voracidade predatória do capital, com esse aparato e suas narrativas. E, correndo por fora, há ainda a destruição dos modos de vida dos povos indígenas e comunidades locais, que possuem outra forma de estar no mundo e de compartilhá-lo com os outros seres que aqui habitam, queimando as possibilidades de aprendizado e uma compreensão mais ampla do mundo.

Sabendo de tudo isso, ou pelo menos desconfiando, os delegados se encontram na COP 15, depois de terem ado por uma pandemia global que tem em suas origens as mesmas forças que degradam a biodiversidade a cada dia. Sabendo que a cada ano novas zoonoses – doenças de origem animal – com potencial pandêmico emergem e que isso se deve ao inusitado encontro entre organismos que não se encontravam antes, em função da destruição de seus ambientes e das mudanças climáticas, os representantes dos países gastam seu tempo discutindo expressões e gramática. Desconfiando, talvez, que nada será significativamente diferente, executam os os de uma dança previamente ensaiada, cujo desfecho será, inevitavelmente, mais destruição.

Talvez o objetivo maior seja manter um fórum, como a CDB, e com ela a ilusão de que há alguma chance do capitalismo não devorar a natureza, criando uma falsa expectativa de que existe alguma possibilidade, que não o fracasso, mas o fracasso é justamente a alma do negócio.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Nurit Bensusan 1213y

    Coordenadora adjunta do Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental (ISA) e especialista em Biodiversidade

Leia também 84q8

Análises
29 de novembro de 2022

Avanços na Agenda de Biodiversidade nas últimas décadas e o papel importante do Brasil 4qy4g

Nas últimas duas décadas houve avanços nos compromissos internacionais para proteção da biodiversidade, com destaque para a atuação do Brasil na criação de unidades de conservação e no combate ao desmatamento

Reportagens
5 de dezembro de 2022

COP15 pode definir mecanismo para proteger áreas em alto mar n736n

Bráulio Dias também avalia que o novo governo deve fazer o Brasil retomar seu protagonismo global em conservação da biodiversidade

Análises
22 de maio de 2019

Biodiversidade, a nossa única opção 4d6e3p

Não ficamos estarrecidos com a notícia que a última vez que houve tão pouco gelo no Ártico foi há 115 mil anos, que abelhas desapareçam, cigarras não cantem mais, vagalumes não pisquem e golfinhos comam plástico. Deveríamos

Mais de ((o))eco 6q6w3q

COP 15 3p6r5

Reportagens

Acordo para frear a perda de biodiversidade global até 2030 está fechado, e agora? 1o2w49

Reportagens

O Brasil na vitrine da restauração global de ecossistemas 423j69

Notícias

Restauração da Mata Atlântica é reconhecida como referência mundial pela ONU 3739p

Reportagens

Acordo decisivo para salvar a biodiversidade começa a ser negociado hoje 3w5e63

Conferência da Biodiversidade 602424

Reportagens

Brasil aposta na conciliação entre convenções da ONU para enfrentar crises globais 4q306r

Reportagens

Brasil lança Metas Nacionais de Biodiversidade, mas não sabe qual o custo de implantá-las 6d3hw

Notícias

COP16.2 – Financiamento da biodiversidade avança, mas ainda faltam recursos 39525t

Notícias

Países precisam desatar nós para proteger a biodiversidade global 34492w

conservação 4y3hz

Análises

Que semana, hein? 3c4zy

Análises

A importância da rede de colaboração em prol da conservação dos manguezais no litoral norte do Paraná 11p46

Notícias

Governo, ongs e sociedade civil se manifestam contra aprovação do PL do Licenciamento 352x2h

Colunas

Mercantilização e caos no licenciamento ambiental brasileiro 1o156g

ibama 606926

Reportagens

Superlotação de animais e más condições geram nova crise no Cetas-RJ 1v428

Salada Verde

Boiada e seus donos devem sair de áreas que destruíram no Pantanal h1y5h

Salada Verde

Assassinato de onça-pintada será investigado pela fiscalização federal 3l4w5s

Salada Verde

Processo contra Salles por contrabando de madeira volta ao STF y6b42

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 1 2p2l4m

  1. Paulo diz:

    Quem sabe, na mente dos poderosos, a destruição, a pandemia, não é vista, de forma marota, como… uma grande forma de ganhar com algum negócio, bem rentável. Talvez olhando para as bolsas de valores de negócios, conseguimos entender esta linha de pensamento dos ditos “poderosos” que influenciam os governos.

    Inté