Análises

O outro lado da montanha 5t30

A prática dos esportes de montanha precisa estar associada a uma conduta responsável com o ambiente e os coletivos organizados são fundamentais para garantirem isso

Giselle Melo · Getúlio Vogetta ·
10 de dezembro de 2020 · 4 anos atrás
Trilha Transespinhaço em implantação com apoio da clube de montanhismo. Foto: Giselle de Melo

A comemoração do Dia Internacional da Montanha teve início em 2013, sendo instituído no dia 11 de dezembro pela Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU). A motivação para a data veio do fato de cerca de 1 bilhão de pessoas viverem nestas regiões e mais da metade da população mundial, depender desta área para o a água e energia limpa. Ainda assim, “as montanhas estão ameaçadas pelas alterações climáticas, degradação dos solos, a exploração excessiva de recursos e desastres naturais que podem ter consequências devastadoras” (ONU, 2020). Ou seja, este dia não é a simples comemoração do local onde praticamos nossas atividades, e sim um chamado à reflexão do que estamos fazendo nestes santuários. Não é sobre subir montanhas e sim como estamos subindo, como estamos interagindo com elas.

E por falar em montanhas, há ainda a discussão entre geólogos, geógrafos e montanhistas com base nas premissas conceituais sobre sua formação e classificações de relevo. Antônio Paulo Faria discorre muito bem sobre isso e aponta que “as montanhas são produzidas por processos distintos”, e em sua pesquisa para saber o que pessoas leigas pensam sobre montanhas e seus ambientes, observou-se uma forte relação com as culturas locais.

Ora, se por um lado temos opiniões científicas distintas, legítimas pela variação de objetivos, e do outro percepções diferentes, temos uma palavra perfeita para designar as montanhas e o montanhismo: diversidade.

Há um ano, a atividade de escalar montanhas foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco, e entrou para uma lista de outras 35 expressões culturais do mundo. A declaração foi feita durante a 14ª sessão do Comitê Intergovernamental, em Bogotá, em 2019. Dentre os diversos pontos citados pela Unesco para esta escolha, destacam-se: o compartilhamento de uma cultura, valorização da história, a necessidade da prática requerer conhecimento sobre vários aspectos do ambiente, a interação homem-ambiente, a adoção de princípios éticos e de mínimo impacto, e o espírito de equipe.

Ainda parafraseando Faria, “ninguém inventou o montanhismo, o que aconteceu foi uma evolução lenta e contínua da forma e dos propósitos com que as pessoas subiam as montanhas”.

Embora a prática não seja uma invenção, a organização do montanhismo sim. Com início nas expedições do final do século XIX, financiadas por governos, associações e clubes de montanhismo, o coletivo foi eficiente para dar luz a este movimento de pessoas que subiam montanhas e que dificilmente chegariam nos marcos atuais se estivessem agindo sozinhas e desarticuladas. Neste sentido, chamamos atenção para a importância social destes coletivos.

Centro Excursionista Mineiro em ação de limpeza da Pedra Grande em Igarapé (MG). Foto André Deberdt

A primeira associação de alpinismo do mundo surgiu em 1857 e ainda está em funcionamento: The Alpine Club, do Reino Unido. Muitos outros clubes surgiram em diversos países e estão filiados à União Internacional das Associações de Alpinismo (UIAA) e estima-se que há mais de 3 milhões de montanhistas organizados pelo mundo.

No Brasil, o primeiro clube de montanhismo nasceu em 1919 e assim como o Clube Alpino inglês, está de pé, firme e forte com seus 101 anos: o Centro Excursionista Brasileiro. A representação nacional é da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada (CBME), que congrega hoje cerca de 40 instituições (federações e associações) e aproximadamente 2.500 montanhistas.

É muito importante ter em mente que o papel destas organizações não se limita à prática das atividades de montanhismo. Elas se comprometem com algo muito maior. São instituições que lutam em prol da conservação das montanhas; do ree de conhecimento; da cultura e da história do montanhismo; dos princípios e valores; da ética; da preservação ambiental; e da luta pelo direito de o aos ambientes naturais.

Todavia, sabemos que o número efetivo de praticantes de atividades em montanhas supera em muito os quadros dos clubes e associações em todos os estados brasileiros. Além do potencial de crescimento destas instituições, temos que fomentar outras, baseadas nos mesmos princípios que fizeram brilhar os olhos da Unesco e principalmente fomentar a diversidade, a pluralidade.

Neste sentido, iniciativas fora do montanhismo organizado são muito bem-vindas e deveriam contar com o apoio de todos em prol do objetivo comum de preservar nossas montanhas. Já vemos isto acontecer com a Rede Brasileira de Trilhas, que possui, não apenas em sua direção, pessoas ligadas aos clubes e federações, mas principalmente em campo, onde estas pessoas auxiliam, com sua expertise, a implantação de trilhas pelo Brasil, buscando espalhar e fomentar os princípios e valores do montanhismo. Como por exemplo o Centro Excursionista Mineiro (CEM) e a Federação de Montanhismo e Escalada do Estado de Minas gerais (FEMEMG), que atuam na implantação da Trilha Transespinhaço; o Clube Paranaense de Montanhismo (M) e a Federação Paranaense de Montanhismo (FEPAM) que, através de um de seus membros, fazem parte da Comissão Jurídica da UIAA e da Diretoria Jurídica da Rede Brasileira de Trilhas; além do longevo Centro Excursionista Brasileiro (CEB), cujo presidente é voluntário e Coordenador Geral da Associação Movimento Trilha Transcarioca.

“As mesmas montanhas que viabilizam o nosso esporte e lazer, que abrigam populações centenárias, que contém os recursos que nos alimentam e que merecem um dia para serem lembradas e comemoradas, agora são palco do exibicionismo destruidor, da foto a qualquer custo, da total falta de empatia, do lixo, do desrespeito às Unidades de Conservação, do ego, do incêndio.”

Por fim, o processo de evolução do montanhismo pode ser lento, mas estamos vivenciando um verdadeiro empuxo, potencializado pelas mídias sociais, nos últimos 10 anos. Se o Princípio de Arquimedes nos remete a um movimento vertical e para cima, como nossa meta literal no montanhismo, a terceira lei de Newton tem prevalecido com o surgimento de uma força de reação na mesma direção e sentido oposto. Assim, infelizmente assistimos a uma polarização no montanhismo, onde lados radicalizados deixam de ver legitimidade em quem não pensa igual e divergências em torno de ideias transformam discordantes em inimigos, e o diálogo não é incentivado – ou mesmo é condenado. O desafio é estimular o respeito às regras comuns, retomar o diálogo e reconhecer a legitimidade de todos os interlocutores, canalizando esforços para o bem comum na proteção e garantia de o ao nosso patrimônio natural. E, felizmente, há pessoas apaixonadas trabalhando para mudar esse cenário.

Quem perde com isso? As montanhas. As mesmas montanhas que viabilizam o nosso esporte e lazer, que abrigam populações centenárias, que contém os recursos que nos alimentam e que merecem um dia para serem lembradas e comemoradas, agora são palco do exibicionismo destruidor, da foto a qualquer custo, da total falta de empatia, do lixo, do desrespeito às Unidades de Conservação, do ego, do incêndio. Além de toda a exploração dos recursos naturais, os serviços turísticos explorados de forma inadequada e irresponsável, e a própria atividade esportiva descompromissada com princípios e valores éticos, tornam a prática do montanhismo sustentável cada vez mais distante e exigem de todos nós atitudes efetivas para conscientizar o maior número de pessoas e mudar esse cenário.

Quem também perde com isso são os montanhistas de todas as gerações. Porque cada vez mais assistiremos a um empobrecimento da experiência proporcionada pelas montanhas, face à descaracterização do meio natural e dos seus desafios. E quando os próprios montanhistas não chegam a consensos, entre si e com outros segmentos, para dialogar, somar esforços e atacar problemas que precisam ser enfrentados, tudo fica mais difícil.

E como reflexão final, conforme disse o grande montanhista Reinhold Messner: “Os dias que estes homens am na montanha são os dias que eles realmente vivem”. Breve, a continuar o ritmo em que constatamos diversas ameaças — cada vez mais próximas e concretas — às nossas montanhas, também o nosso esporte, nosso lazer e, porque não, o nosso estilo de vida serão irremediavelmente afetados, tornando cada vez mais difícil viver.

Assim, fica o convite para celebrarmos o dia Internacional da Montanha, fazendo uma verdadeira reflexão sobre a conservação e o desenvolvimento de uma relação harmoniosa com o meio natural e com os nossos pares.

Assista a live da última terça-feira (01º/12) sobre montanhismo:

 

Sobre os autores:

*Giselle Melo é presidente da Federação de Montanhismo e Escalada de Minas Gerais

**Getúlio Vogetta é membro da Federação Paranaense de Montanhismo

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

 

Leia também

A importância das trilhas de longo curso na Amazônia

Os caminhos históricos dos Campos Gerais do Paraná

Caminhos do Planalto Central (C), o que é?

  • Giselle Melo 2ut4e

  • Getúlio Vogetta z2y5t

Leia também 84q8

Análises
15 de novembro de 2020

Caminhos do Planalto Central (C), o que é? 6l2ct

O trilheiro tem a oportunidade de conhecer a diversidade e a riqueza ambiental e cultural do território do Distrito Federal, reunidos em 400 km de trilhas

Análises
1 de dezembro de 2020

Os caminhos históricos dos Campos Gerais do Paraná 503x47

Dos tropeiros aos trilheiros, rotas para caminhantes cruzam o estado paranaense desde os primórdios da história da colonização do Brasil

Análises
25 de novembro de 2020

A importância das trilhas de longo curso na Amazônia 58o5u

Iniciativas como a Trilha Chico Mendes, a Rota Guarumã, Trilha Amazônia Atlântica e os Caminhos do Rio Negro foram destaques no sobre as trilhas na maior floresta tropical do mundo

Mais de ((o))eco 6q6w3q

montanhismo 522t30

Análises

Os caminhos do montanhismo e a aventura em Petrópolis (RJ) 702j1i

Reportagens

A trajetória de um montanhista que decidiu lutar pela conservação 2whw

Salada Verde

A identidade do montanhista – participe do censo! 1z2s4i

Análises

Precisamos de mais pesquisadores montanhistas no Espinhaço mineiro n1l1i

trilhas 6k6a2o

Reportagens

Ajustes em trilha podem melhorar sua função de corredor ecológico no Cerrado 3w201a

Salada Verde

Trilha Transcarioca terá trecho oceânico até arquipélago das Cagarras 5a36r

Salada Verde

São Paulo inaugura trilha que cruza áreas protegidas da cidade 3f3k4m

Salada Verde

Associação Rede Brasileira de Trilhas elege nova presidência 5b3e5l

trilha de longo curso 6w6g48

Salada Verde

Em resposta a Trump, Canadá barra entrada de trilheiros na Pacific Crest Trail 1j6b1w

Reportagens

2024 é o primeiro ano em que a temperatura média da Terra deve ultraar 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais 3g5x5x

Reportagens

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia 5r2y21

Análises

Caminho da Mata Atlântica: uma jornada pelo Planalto Paulista 6f5i2p

Capa 5w1yx

Fotografia

A Catedral de Mármore 4f25l

Fotografia

Um monte entre as nuvens 623h3o

Fotografia

Uma praia sem mar 1v4hp

Fotografia

Preikestolen, o Púlpito de Pedra 2v645l

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 2 5d6d45

    1. Giselle diz:

      Cliquei sem querer na mãozinha pra baixo, desconsiderar.