Desde 2018, a onça-pintada é o símbolo brasileiro da conservação da biodiversidade. Além de ameaças como perda e fragmentação de hábitat, endogamia, caça, mortes por retaliação e atropelamentos, a espécie enfrenta um inimigo poderoso: o medo.
Parece estar profundamente enraizado no inconsciente coletivo que as onças estão na beira da mata apenas esperando para pular no seu pescoço. Ledo engano. Tudo o que a onça quer é ser onça: caçar suas presas, ter seus filhotes, viver em paz em seu ambiente. Não são más. Não são cruéis. São onças.
Carnívoros de topo de cadeia que caçam para sobreviver – e que são indicadores da saúde dos ambientes onde ocorrem.
Em um incidente ainda cheio de incertezas e indefinições, uma pessoa perdeu a vida, uma família perdeu um ente querido, e eu me solidarizo demais com a dor da família. É devastador. E todos os que lutam pela conservação da onça perderam mais uma batalha para o medo.
Em meio a muitas informações desencontradas, circula a notícia de que o animal era habituado à presença de pessoas, atraído frequentemente com comida. Parece a crônica de uma morte anunciada.
Quando o ser humano a a oferecer alimento para atrair esses animais – não importa o motivo –, altera o equilíbrio da relação entre pessoas e onças. Quando se tenta “domesticar” uma onça na natureza, roubamos dela seu direito mais sagrado: ser ela mesma.
Uma onça que vive na natureza e é acostumada com ceva, na verdade vive em cativeiro. Com cercas invisíveis, que a tornam dependente do ser humano, alteram seu comportamento de caça e colocam as próprias onças e as pessoas em risco.
Deixemos as onças serem onças.
Respeitando sua natureza selvagem, garantimos que esses olhos dourados sigam brilhando nas matas sem representar riscos para as pessoas.
Onça não é pet. Onças precisam ser livres para traçar seus caminhos na mata, sem cercas invisíveis. Rainhas da floresta, que merecem ser iradas à distância.
Em caso de encontros com seres humanos, as onças tendem a se afastar, a fugir do contato. Somos nós que criamos o perigo quando nos aproximamos demais.
A onça-pintada não vê o ser humano como presa – para ela, somos apenas “gigantes desajeitados” que invadem seu lar. Na natureza, seu instinto caçador se volta para capivaras, veados e porcos-do-mato, jamais para nós.
Há alguns anos, havia no Parque Nacional do Iguaçu uma onça-pintada, a Atiaia, que não tinha uma reação muito aversiva a seres humanos e, por conta disso, era observada com frequência, embora nunca tenha se aproximado das pessoas. Lembro de ouvir alguém dizer: “Ah, a Atiaia é mansa!”. Não é mansa. É onça. É selvagem. E, nesse desejo de amansar o que é selvagem, acabamos ameaçando sua vida, estreitando o limiar desse contato.
Quando eu trabalhava na Caatinga, lembro que os animais eram muitas vezes divididos em duas categorias: os que merecem viver e os que não merecem viver – grupo que incluía onças, cobras, carcarás. E nós, bicho-homem, parecemos achar que temos prioridade sobre qualquer espécie. Que temos o direito de, como espécie, ocupar basicamente 100% do planeta.
Enquanto isso, as onças, meio sombra, meio reza, seguem com um pé na extinção e outro na casca de banana, se equilibrando no fio da navalha – na tênue fronteira do julgamento humano, onde a régua oscila entre vítima e vilã.
Ainda da Caatinga trago a lembrança de um amigo que dizia que aquela era terra do “já teve, não tem mais”. Aqui, nós lutamos para que não precisemos dizer da onça-pintada: “tem, mas acabou”.
Ela se equilibra entre fera e fantasma, no limite que separa os vivos dos esquecidos. Entre o que é e o que nunca mais será. E a onça segue sendo forte – afinal, não é essa a sina dos que vivem nos extremos do mundo?
Seguindo a linha de raciocínio de Stephen Jay Gould: rebobine a fita da vida e a história nunca se repetirá. O que cai do mundo não volta mais. Que nossas atitudes possam refletir respeito, e não ignorância.
E que as onças possam viver em paz em seu ambiente.
“Eu sou onça / Eu sou bicho do mato / Eu sou um bicho / Eu sou uma fera / Eu sou a natureza.”
(Xangai)
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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Que texto lindo! Parabéns à autora.
Nós, humanos, não temos regras para o contato com as outras espécies. Agimos por impulso, tolamente e perigosamente.
Falou tudo …. lindo texto… , deixemos as onças em paz na casa delas , as matas são delas, somos invasores , se alguém gosta de ler as escrituras.., ali em Gênesis quando Noé saiu da arca , o próprio Criador disse disse que colocaria no instinto animal ter medo do homem, GENESUS 9:2 ( PARA WUEM QUISER CONFERIR ) Deus já sabia oque ia acontecer, certamente se não tivesse feito dessa forma, o homem , sim a humanidade já teria exterminado praticamente grande parte dos animais na face da terra , primeiro Deus , depois aqueles que inteligentemente se importam com essas dádivas divinas
Eu amo onças, elas lá nas matas, seu habitat natural, e eu aqui tbem no meu. Respeite a casa delas e nunca será incomodado no espaço que lhe pertence. O homem, intitulado civilizado, na verdade de civilização num tem muito não, pois se realmente assim o fosse, não invadiria o espaço dos bichos.
Disse bem a pesquisadora e escritora: Deixem as onças, serem onças. Não queiram domesticá – las afinal elas são selvagens e não querem “selvanizar” você. Chega de maldade com a natureza, por ganância e de se achar o dono do mundo.
Achei este texto lindo demais! Parabéns Yara
Sou amante da natureza e defendo animais sempre. Na estrada, já desviei de cobras tentando atravessar o asfalto quente, para não atropelar elas. Só que tanto a autora do texto tanto quanto eu, deveriamos nos posicionarmos no lugar da família. E atentar para o fato de que a infestação de Javalis começou com essa excessiva troca de cuidados excessivos com animais, em detrimento dos seres humanos. Qual o predador natural da onça? Quem vai controlar e defender as comunidades expostas aos riscos de uma super população de onças?
Excelente texto. Há vários vídeos na internet a respeito. Um deles mostra um homem dando peixe a uma onça dentro de uma canoa. Imprudência total. Não dá prá ver se era o Seu Jorge, mas é bem provável. Em outro vídeo o apresentador comenta que foi a onça que amançou o humano. O certo mesmo é que a menos culpada é a onça, por maior que seja nossa solidariedade à família do Seu Jorge.
Belas palavras más na prática quem mora em regiões infestada de onças,que matam suas criações seus cães e ulgum ente querido,infelizmente não tem como não ter medo!
O homem que habit todo espaço da terra 🐠🐠🐠
Texto extremamente correto, eivado de especismo ou antropocentrismo, e um vergonhoso tapa de luva de pelica na cara da humanidade! E os que dizem que a vida de um ser humano vale mais do que a vida de qualquer animal, parece que encaram a vida como uma guerra entre humanos e animais, e deveriam saber que o valor de uma vida não invalida o valor de outra, principalmente levando-se em conta que o homem raciocina, pensa, e os animais não, o que é uma imensa desigualdade a favor do homem! Be kind with nature!
O texto diz tudo e mais um pouco. A ambição desenfreada do homem faz com que os animais selvagens de todo o planeta vivam num território de cercas INVISÍVEIS. Por isso gritam, se revoltam e ao contrário do ser humano lutam por sua liberdade.
Bom Dia, querida Yara! Parabéns por este artigo tão especial e esclarecedor; prbns pela sua formação; Prbns por todos os trabalhos e lutas que vc empreende em defesa da flora e fauna. Eu AMO e respeito profundamente a Natureza, criação tão maravilhosa e equilibrada que Deus fez prá vivermos em harmonia com ela. Entretanto, a ganância financeira, impiedade humana (agro, caça e outras maldades) devastam a Natureza. Aqui em MG havia mtas Onças, hj raríssimas. Claro que a vida humana é valiosa, mas dos animais tbm. O recente acidente com o sr Jorge é lamentável, mas em mtos casos há forte dose de IMPRUDÊNCIA humana. Por ex., vc deve ter visto, aquela cena maravilhosa de uma Onça ensinando seu filhote a nadar. Ora, o barco com aquelas pessoas, se aproximou d+ da conta. Mta imprudência. Aqui na Gerdau e na Vale, onde há mta mata, NÃO pode matar bicho NENHUM. Qndo eu percebo nos noticiários incêndios nas matas, eu NÃO assisto, pois eu choro. Sinto sempre a dor da fauna e flora. Yara, p.f., não desista NUNCA de suas lutas pela conservação e proteção ferrenha da Natureza. Estou tão farto de ver a maldade humana nas minhas quase sete décadas de vida. Há dias fui salvar um Marimbondo e outros 3 me ferraram na cara, rss, e em nenhum momento fiquei com raiva. Bom, mais uma vez te envio meus Parabéns pelo seu excelente trabalho. Que Deus te abençoe sempre!! Um abraço.
Um ser humano vale mais que qualquer animal; poemas são bonitos , mas a realidade é outra.
Tem “ser humano” que não vale um verme , conheço muitos
Hoje em dia ser humano não vale nada. Deixasse o planeta ser dominado pelos animais o mundo seria bem melhor.
Por
Maravilhoso texto! Emocionante e certeiro nas afirmações e posicionamto!
Parabéns Yara, pelo seu trabalho incansável e pela análise precisa com a qual você esclarece esse evento tão lamentável.