Análises

O que cai do mundo não volta mais 47361

Em um incidente ainda cheio de incertezas e indefinições, uma pessoa perdeu a vida. É devastador. E todos os que lutam pela conservação da onça perderam mais uma batalha para o medo

Yara de Melo Barros ·
29 de abril de 2025

Desde 2018, a onça-pintada é o símbolo brasileiro da conservação da biodiversidade. Além de ameaças como perda e fragmentação de hábitat, endogamia, caça, mortes por retaliação e atropelamentos, a espécie enfrenta um inimigo poderoso: o medo.

Parece estar profundamente enraizado no inconsciente coletivo que as onças estão na beira da mata apenas esperando para pular no seu pescoço. Ledo engano. Tudo o que a onça quer é ser onça: caçar suas presas, ter seus filhotes, viver em paz em seu ambiente. Não são más. Não são cruéis. São onças.

Carnívoros de topo de cadeia que caçam para sobreviver – e que são indicadores da saúde dos ambientes onde ocorrem.

Em um incidente ainda cheio de incertezas e indefinições, uma pessoa perdeu a vida, uma família perdeu um ente querido, e eu me solidarizo demais com a dor da família. É devastador. E todos os que lutam pela conservação da onça perderam mais uma batalha para o medo.

Em meio a muitas informações desencontradas, circula a notícia de que o animal era habituado à presença de pessoas, atraído frequentemente com comida. Parece a crônica de uma morte anunciada.

Quando o ser humano a a oferecer alimento para atrair esses animais – não importa o motivo –, altera o equilíbrio da relação entre pessoas e onças. Quando se tenta “domesticar” uma onça na natureza, roubamos dela seu direito mais sagrado: ser ela mesma.

Uma onça que vive na natureza e é acostumada com ceva, na verdade vive em cativeiro. Com cercas invisíveis, que a tornam dependente do ser humano, alteram seu comportamento de caça e colocam as próprias onças e as pessoas em risco.

Deixemos as onças serem onças.

Respeitando sua natureza selvagem, garantimos que esses olhos dourados sigam brilhando nas matas sem representar riscos para as pessoas.

Onça não é pet. Onças precisam ser livres para traçar seus caminhos na mata, sem cercas invisíveis. Rainhas da floresta, que merecem ser iradas à distância.

Em caso de encontros com seres humanos, as onças tendem a se afastar, a fugir do contato. Somos nós que criamos o perigo quando nos aproximamos demais.

A onça-pintada não vê o ser humano como presa – para ela, somos apenas “gigantes desajeitados” que invadem seu lar. Na natureza, seu instinto caçador se volta para capivaras, veados e porcos-do-mato, jamais para nós.

Há alguns anos, havia no Parque Nacional do Iguaçu uma onça-pintada, a Atiaia, que não tinha uma reação muito aversiva a seres humanos e, por conta disso, era observada com frequência, embora nunca tenha se aproximado das pessoas. Lembro de ouvir alguém dizer: “Ah, a Atiaia é mansa!”. Não é mansa. É onça. É selvagem. E, nesse desejo de amansar o que é selvagem, acabamos ameaçando sua vida, estreitando o limiar desse contato.

Quando eu trabalhava na Caatinga, lembro que os animais eram muitas vezes divididos em duas categorias: os que merecem viver e os que não merecem viver – grupo que incluía onças, cobras, carcarás. E nós, bicho-homem, parecemos achar que temos prioridade sobre qualquer espécie. Que temos o direito de, como espécie, ocupar basicamente 100% do planeta.

Enquanto isso, as onças, meio sombra, meio reza, seguem com um pé na extinção e outro na casca de banana, se equilibrando no fio da navalha – na tênue fronteira do julgamento humano, onde a régua oscila entre vítima e vilã.

Ainda da Caatinga trago a lembrança de um amigo que dizia que aquela era terra do “já teve, não tem mais”. Aqui, nós lutamos para que não precisemos dizer da onça-pintada: “tem, mas acabou”.

Ela se equilibra entre fera e fantasma, no limite que separa os vivos dos esquecidos. Entre o que é e o que nunca mais será. E a onça segue sendo forte – afinal, não é essa a sina dos que vivem nos extremos do mundo?

Seguindo a linha de raciocínio de Stephen Jay Gould: rebobine a fita da vida e a história nunca se repetirá. O que cai do mundo não volta mais. Que nossas atitudes possam refletir respeito, e não ignorância.

E que as onças possam viver em paz em seu ambiente.

“Eu sou onça / Eu sou bicho do mato / Eu sou um bicho / Eu sou uma fera / Eu sou a natureza.”
(Xangai)

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Yara de Melo Barros 5y3k30

    Doutora em zoologia, membro do SG Brasil, coordenadora do Projeto Onças do Iguaçu e pesquisadora Associada do Instituto Pró Carnívoros.

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Comentários 16 5m3u6i

  1. marleth Rejane da silva diz:

    Que texto lindo! Parabéns à autora.
    Nós, humanos, não temos regras para o contato com as outras espécies. Agimos por impulso, tolamente e perigosamente.


  2. Marli diz:

    Falou tudo …. lindo texto… , deixemos as onças em paz na casa delas , as matas são delas, somos invasores , se alguém gosta de ler as escrituras.., ali em Gênesis quando Noé saiu da arca , o próprio Criador disse disse que colocaria no instinto animal ter medo do homem, GENESUS 9:2 ( PARA WUEM QUISER CONFERIR ) Deus já sabia oque ia acontecer, certamente se não tivesse feito dessa forma, o homem , sim a humanidade já teria exterminado praticamente grande parte dos animais na face da terra , primeiro Deus , depois aqueles que inteligentemente se importam com essas dádivas divinas


  3. Lucilandia de Souza Paiv diz:

    Eu amo onças, elas lá nas matas, seu habitat natural, e eu aqui tbem no meu. Respeite a casa delas e nunca será incomodado no espaço que lhe pertence. O homem, intitulado civilizado, na verdade de civilização num tem muito não, pois se realmente assim o fosse, não invadiria o espaço dos bichos.
    Disse bem a pesquisadora e escritora: Deixem as onças, serem onças. Não queiram domesticá – las afinal elas são selvagens e não querem “selvanizar” você. Chega de maldade com a natureza, por ganância e de se achar o dono do mundo.

    Achei este texto lindo demais! Parabéns Yara


  4. Gilvan Accosta Peters diz:

    Sou amante da natureza e defendo animais sempre. Na estrada, já desviei de cobras tentando atravessar o asfalto quente, para não atropelar elas. Só que tanto a autora do texto tanto quanto eu, deveriamos nos posicionarmos no lugar da família. E atentar para o fato de que a infestação de Javalis começou com essa excessiva troca de cuidados excessivos com animais, em detrimento dos seres humanos. Qual o predador natural da onça? Quem vai controlar e defender as comunidades expostas aos riscos de uma super população de onças?


  5. RICARDO FERRAZ MANSUR diz:

    Excelente texto. Há vários vídeos na internet a respeito. Um deles mostra um homem dando peixe a uma onça dentro de uma canoa. Imprudência total. Não dá prá ver se era o Seu Jorge, mas é bem provável. Em outro vídeo o apresentador comenta que foi a onça que amançou o humano. O certo mesmo é que a menos culpada é a onça, por maior que seja nossa solidariedade à família do Seu Jorge.


  6. Welington diz:

    Belas palavras más na prática quem mora em regiões infestada de onças,que matam suas criações seus cães e ulgum ente querido,infelizmente não tem como não ter medo!


    1. Waltemir José dos Santos diz:

      O homem que habit todo espaço da terra 🐠🐠🐠


  7. John Titor diz:

    Texto extremamente correto, eivado de especismo ou antropocentrismo, e um vergonhoso tapa de luva de pelica na cara da humanidade! E os que dizem que a vida de um ser humano vale mais do que a vida de qualquer animal, parece que encaram a vida como uma guerra entre humanos e animais, e deveriam saber que o valor de uma vida não invalida o valor de outra, principalmente levando-se em conta que o homem raciocina, pensa, e os animais não, o que é uma imensa desigualdade a favor do homem! Be kind with nature!


  8. Sidney SC Yamanaka diz:

    O texto diz tudo e mais um pouco. A ambição desenfreada do homem faz com que os animais selvagens de todo o planeta vivam num território de cercas INVISÍVEIS. Por isso gritam, se revoltam e ao contrário do ser humano lutam por sua liberdade.


  9. Sebastião Jorge S. Neves diz:

    Bom Dia, querida Yara! Parabéns por este artigo tão especial e esclarecedor; prbns pela sua formação; Prbns por todos os trabalhos e lutas que vc empreende em defesa da flora e fauna. Eu AMO e respeito profundamente a Natureza, criação tão maravilhosa e equilibrada que Deus fez prá vivermos em harmonia com ela. Entretanto, a ganância financeira, impiedade humana (agro, caça e outras maldades) devastam a Natureza. Aqui em MG havia mtas Onças, hj raríssimas. Claro que a vida humana é valiosa, mas dos animais tbm. O recente acidente com o sr Jorge é lamentável, mas em mtos casos há forte dose de IMPRUDÊNCIA humana. Por ex., vc deve ter visto, aquela cena maravilhosa de uma Onça ensinando seu filhote a nadar. Ora, o barco com aquelas pessoas, se aproximou d+ da conta. Mta imprudência. Aqui na Gerdau e na Vale, onde há mta mata, NÃO pode matar bicho NENHUM. Qndo eu percebo nos noticiários incêndios nas matas, eu NÃO assisto, pois eu choro. Sinto sempre a dor da fauna e flora. Yara, p.f., não desista NUNCA de suas lutas pela conservação e proteção ferrenha da Natureza. Estou tão farto de ver a maldade humana nas minhas quase sete décadas de vida. Há dias fui salvar um Marimbondo e outros 3 me ferraram na cara, rss, e em nenhum momento fiquei com raiva. Bom, mais uma vez te envio meus Parabéns pelo seu excelente trabalho. Que Deus te abençoe sempre!! Um abraço.


  10. Melo diz:

    Um ser humano vale mais que qualquer animal; poemas são bonitos , mas a realidade é outra.


    1. ALUISIO SAMUEL DA SILVA diz:

      Tem “ser humano” que não vale um verme , conheço muitos


    2. Lopes diz:

      Hoje em dia ser humano não vale nada. Deixasse o planeta ser dominado pelos animais o mundo seria bem melhor.


  11. Marina Landeiro diz:

    Maravilhoso texto! Emocionante e certeiro nas afirmações e posicionamto!


  12. Parabéns Yara, pelo seu trabalho incansável e pela análise precisa com a qual você esclarece esse evento tão lamentável.