Análises

Permaneceremos de pé 3hzs

A força de Dom e Bruno ecoa e faz saber: somos muitos neste luto e nesta luta, e devemos seguir juntos para honrar a memória deles e de tantos outros

Fabio Origuela de Lira ·
22 de junho de 2022 · 3 anos atrás

Ontem estava eu, entre relatórios, sonhos e projetos, com a TV ligada para não me sentir só, enquanto as crianças e o meu amor estavam pela casa. Ela veio, sentou-se a minha frente e na TV falavam sobre Bruno e Dom. Eu tentava disfarçar a tristeza, quando percebi o ar ficar mais pesado e ela se levantou. Enquanto se encaminhava para sumir dos meus olhos, chamei-a. Ela parou, sem se virar, permanecendo de pé de forma lúgubre. Eu me aproximei e a abracei ternamente, como dita o momento. Sabia que chorava. Suas lágrimas caíam sobre meus braços e seu soluço contido foi então ouvido, formando eco nas minhas sensações de dor e de luto. Indaguei sobre o motivo daquela dor que parecia vir da alma e, acreditando saber a resposta (mas sem imaginar a sua profundidade), ela apenas balbuciou: “eu vi você”. E agora, mais de 24 horas depois, algo que já sentira e que ainda sinto, reverbera neste combalido peito. Podia ter sido eu, podia ter sido qualquer um de nós. Na verdade, é até mais do que isso. Não podia, foi. Fomos todos nós. E somos todos quando um de nós, na guerra em que nos encontramos, desaparece dos nossos olhos. Nossa crença na luta dá lugar a um sentimento de um vazio inconsolável, de um desespero sem fim, de que nada mais irá nos fazer aprumar. Nos sentimos sós.

Essa dor tem nome, ou melhor, nomes. Ainda que pareça estranho para alguns, a sensação que tenho sobre todos é de que perdemos irmãos. A referência fraterna não tem relação com a religiosidade que conhecemos, mas é mais profunda, relacionada à terra, à existência, ao respeito pelos seres que a habitam, sejam eles humanos ou não humanos. Nossa fraternidade se relaciona à beleza do caminho, às histórias vividas e contadas, ao canto que alimenta e aos risos que espantam a tristeza, ao movimento que eleva da inércia a Anima (do latim alma).

Quanto mais me aprofundo na tentativa de explicar, mais entendo que vai além da minha luta, é a nossa luta. Que de tantas cores, tantos desejos e outros tantos quereres, se faz um só ato, se faz um. O um da convergência, do forte eco além do tempo e do espaço que acreditamos que poderia nos dividir, mas não divide, nos une. Essa sensação de que estamos separados é apenas uma ilusão, a ilusão de uma visão em vertigo. Acredite, estamos juntos e permaneceremos juntos.

“Mas que tudo isso se torne força. Viveremos o luto, vivemos o luto. Cada um viverá ao seu modo, de acordo com os seus, juntos ou só”.

Poderia dissertar aqui de tantos outros sentimentos despertos, da cólera que percorre nosso ser, da revolta que nos envolve quando vemos que a luta de irmãos pela justiça nem sequer é enaltecida, a insubmissão contra a extinção do caminho, contra o calar das histórias. Mas que tudo isso se torne força. Viveremos o luto, vivemos o luto. Cada um viverá ao seu modo, de acordo com os seus, juntos ou só.

Vou abrir um parêntese para falar do luto que vivencio. Estes dias lembrei que meu primeiro contato com algo que vai além do que se vê, pelos caminhos da Amazônia, deu-se em algum ponto entre o morrer e o despertar. Aprendi, com os povos da floresta, a acender em silêncio o tabaco e rezar de um modo bem particular. Eu, que nunca fui de rezar, aprendi a falar com o invisível. Dias atrás, o fiz mais uma vez, só, sob o límpido céu das terras altas das Gerais. Eu, meu luto e minha oração em fumaça. Foi a maneira que encontrei, para honrar tantas histórias que sentimos.

O que fazer desse ponto em diante? Muitos clamam, outros tantos, enlutados, precisam de tempo, e outros se levantam. Escuto em meus pensamentos os cantos, dois cantos. Um reflete parte do que sou, parte do que sinto nos sertões, o canto que na voz de Vandré nos diz que ainda há tanto pra se fazer e um tanto pra se salvar, “você que não entendeu, não perde por esperar”. É força. Porém mais que força e de uma beleza profunda, ouço outro canto, cantado em encantamento, pela alma dos povos originários Kanamari, o canto Wahanararai.

O canto nos fortalece, não impede as lágrimas, mas as significam. Ecoa além dos meandros em que podia ser ouvida. Vai além, desce pelo Javari e se mistura ao Solimões que se mistura ainda ao Purus, Juruá e Japurá, unindo-se ao Negro, absorve o valente Madeira até o grande Tapajós e de lá ainda ao Tocantins/Araguaia e ao mar. Se transforma em nuvens, as mesmas nuvens que se precipitam em vida, do litoral aos vales e até as terras altas. A vida ecoa.    

E assim, como iniciei falando do amor que tenho, vou chegando ao final falando sobre o que me fortalece. Hoje pela manhã, envolvido nos planejamentos sobre peixes e gente, ao falar da luta e das possibilidades, mesmo sabendo que o risco sempre existirá, ela sorriu.  

Nós continuaremos a lutar, lutaremos por todos, lutaremos por nós. Honraremos as histórias, todas elas, que nos fortalecem de todos os cantos e encantos. Que após todo luto vivido, possamos novamente nos reunir. Estaremos de pé por todos os lugares. Somos um só.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Fabio Origuela de Lira 4f455k

    Arqueólogo e Antropólogo, com mestrado em História das Paisagens pela UFV, especialista em peixes da família Rivulidae, Membr...

Leia também 84q8

Reportagens
15 de junho de 2022

Amazônia em guerra: morte de Dom e Bruno escancara situação de abandono de Terras Indígenas do país 3s4d58

Jornalista e indigenista foram executados no Dia do Meio Ambiente. Área onde ocorreu o crime é dominada por traficantes, garimpeiros e madeireiros ilegais

Notícias
13 de janeiro de 2022

Município onde família foi assassinada teve 62 mortes por conflito de terra nos últimos 40 anos 1o5g1l

Mais de 50 organizações divulgaram uma carta pública cobrando autoridades sobre o assassinato da família de ambientalistas no município paraense, que acumula mortes por conflito de terra

Notícias
29 de julho de 2020

Global Witness: 212 ativistas ambientais foram assassinados em 2019 4ax1

Brasil ficou em terceiro lugar, atrás de Colômbia e Filipinas. Vinte e quatro pessoas foram mortas no país, 10 deles eram indígenas

Mais de ((o))eco 6q6w3q

assassinatos de ativistas 523b4s

Colunas

Justiça ambiental: A luta pela vida na América Latina 4769m

Notícias

Amazônia concentra 80% do total de assassinatos em conflitos no campo 3wq3j

Notícias

Município onde família foi assassinada teve 62 mortes por conflito de terra nos últimos 40 anos 1o5g1l

Notícias

Polícia ouve testemunhas sobre homicídio de ambientalistas no Pará 1033p

amazônia ia40

Notícias

Brasil tem 34 espécies de primatas ameaçadas de extinção 3y45o

Colunas

No jogo das apostas, quais influenciadores apostarão na Amazônia? 1a2m6g

Notícias

Degradação da Amazônia cresce 163% em dois anos, enquanto desmatamento cai 54% no mesmo período 1b2369

Reportagens

Petroleiras aproveitam disputas entre indígenas e ocupam papel de Estado enquanto exploram territórios no Equador s201v

desmatamento 4y695i

Notícias

Brasil tem 34 espécies de primatas ameaçadas de extinção 3y45o

Notícias

Legalidade de megadesmates no Pantanal avança para julgamento no STJ 2o3q1t

Colunas

No jogo das apostas, quais influenciadores apostarão na Amazônia? 1a2m6g

Análises

Que semana, hein? 3c4zy

frases 423t2w

Notícias

Frases do Meio Ambiente – Joaquin Phoenix, ator 256sk

Notícias

Frases do Meio Ambiente – Marina Silva, política (06/11/2020) 6n4s66

Notícias

11 Frases do Meio Ambiente sobre Animais 282r21

Notícias

Frases do Meio Ambiente – David Attenborough, naturalista (01/10/2020) 5y5r3y

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 1 2p2l4m

  1. Milena Neves Sampaio diz:

    Que textão incrível , Enrico Bernard!!!!!!!