Em uma mesa-redonda das Nações Unidas sobre energias alternativas, em plena crise do petróleo do século ado, um representante do governo da Índia explicava o programa de biodigestores domésticos e comunitários que seu país planejava implantar. O físico argentino Jorge Sábato, irmão do escritor Ernesto Sábato, escutava atentamente o entusiasmado relato. O indiano contava que seriam implantados biodigestores nas casas das populações mais pobres, que sequer tinham rede de esgoto e saneamento básico. O material dos biodigestores seria recolhido semanalmente e levado para os biodigestores comunitários. Haveria, até, biodigestores maiores, atendendo a mais de uma comunidade. Ao final da exposição, Sábato, inteligência brilhante, de língua tão afinada, quanto a pena de seu irmão, pediu a palavra e sentenciou:
– “I know what will happen in India: shit will become a commodity”.
A verve irônica dos gênios parecia perseguir a promessa do biogás, naqueles idos da década de 70 do Século XX. No Brasil, numa reunião do Conselho de Segurança Nacional, também tendo por tema a crise energética, o então ministro das Minas e Energia, César Cals, apresentou a idéia de coletar os dejetos da pecuária brasileira, para gerar energia de biogás. Mário Henrique Simonsen, outra mente brilhante, capaz de julgamentos instantâneos definitivos, ouvia com atenção. Ao final, disparou:
– “Então o presidente Geisel será o criador da Bostobrás”.
Pois é, mas diante do aquecimento global, a idéia de aprisionar os gases estufa resultantes da criação em escala de animais, ou a ser não apenas uma alternativa energética atraente, mas economicamente tentadora. Em outras palavras, como vaticinou Jorge Sábato, a bosta virou uma commodity. Só não foi na Índia. Virou uma commodity globalmente, objeto de incentivos pela via dos créditos de carbono. Virou, também, como imaginava Simonsen, razão suficiente para criar empresas, só que não necessariamente estatais, mas privadas. Embora com participação efetiva do estado e de agências multilaterais, como poderes concedentes e regulatórios.
Exemplo concreto: no Brasil, a Comissão Interministerial de Mudanças Globais do Clima do Ministério de Ciência e Tecnologia para a geração de créditos de carbono, já aprovou 18 projetos da empresa AgCert Soluções Ambientais, com sede em Dublin, na Irlanda. Esses projetos, enquadrados no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, representam um investimento de mais de 100 milhões de reais, para implantar biodigestores em 300 fazendas de suinocultura, em 13 estados brasileiros. Os biodigestores retêm os gases estufa – principalmente CO2 e metano – gerando biogás, cuja queima pode render 640 mil créditos de carbono por ano, com uma redução de 6,4 milhões de toneladas de carbono na atmosfera em 10 anos, pelo que informa a empresa.
A coisa funciona assim. Atualmente, os dejetos da suinocultura são despejados em lagoas de tratamento. A decomposição da matéria orgânica se transforma em um lodo, que serve como fertilizante. Nesse processo de decantação é que são liberados gases estufa. Antes dos dejetos serem lançados na lagoa, esses gases são aprisionados em biodigestores. A queima desse biogás, para gerar energia ou sua utilização em aquecedores, se converte em créditos de carbono, vendidos para os países mais industrializados, que precisam cumprir metas de redução de emissões dentro do Protocolo de Kyoto. A receita dos créditos de carbono permite à AgCert pagar a obra, sua manutenção e operação, remunerar o investimento e ainda rear 10% do faturamento ao produtor.
A AgCert foi criada em 2000, para desenvolver processos-padrão para reduzir emissões de gases estufa em fazendas de criação intensiva de animais. Ela já possui investimentos no México, Argentina, Chile, Canadá e Estados Unidos e pretende gerar mais de 20 milhões de créditos de carbono nos próximos dez anos. Satisfeita com a experiência na suinocultura, ela pretende agora avançar sobre a nossa vasta bovinocultura, uma das principais fontes de emissões de gases estufa do país, juntamente com as queimadas e o desmatamento da Amazônia.
Como se pode ver, a bosta virou, definitivamente, uma commodity da melhor qualidade.
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