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Ecologia à brasileira II 642w4m

A rejeição da natureza pela elite ajuda a explicar nossas relações sociais. Para Gilberto Freyre, o legado ecológico brasileiro vem das senzalas e quilombos.

19 de setembro de 2005 · 20 anos atrás
  • José Augusto Pádua 5o7235

    Doutor em Ciências Políticas e professor adjunto da UFRJ.

Na coluna anterior Ecologia à Brasileira I, comecei a compartilhar com os leitores d’O Eco algumas reflexões sobre a contribuição de Gilberto Freyre para a criação de um pensamento ecológico brasileiro, caracterizado pela criatividade, a heterodoxia e a busca pela estreita aproximação entre o estudo do mundo natural e dos fenômenos sociais/culturais. Um ponto de vista ecológico, em suas palavras, que deveria ser “não só científico, como filosófico e até estético e poético, de estudo e interpretação de uma região, e não um rígido ecologismo geométrico”.

Afirmei também que, mais do que informações precisas, o que devemos buscar em Freyre são intuições profundas. O estoque dessas últimas, no entanto, retiradas especialmente do livro “Nordeste – Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil”, de 1936, não se esgotou com as preciosidades oferecidas na coluna anterior. O Mestre de Apicucos tem mais para oferecer.

Uma outra intuição fundamental, que pretendo examinar aqui, diz respeito ao fato de que as relações sociais que moldaram a história da formação do Brasil – sejam de dominação brutal, convivência mais ou menos aberta ou cooperação – sempre possuíram uma forte dimensão ecológica, configurando modos diferenciados de relação entre os homens e o ambiente natural, inclusive no que se refere à produção de significados e produtos culturais.

Uma apresentação sintética dessa intuição, com grande refinamento literário, aparece na seguinte agem:

“Com a destruição das matas para a cana dominar sozinha sobre o preto, o roxo ou o vermelho dessa terra crua, a natureza do Nordeste – a vida toda – deixou de ser um todo harmonioso na sua interdependência para se desenvolverem relações de extrema ou exagerada subordinação: de umas pessoas a outras, de umas plantas a outras, de uns animais a outros; da massa inteira da vegetação à cana imperial e todo-poderosa; de toda variedade de vida humana e animal ao pequeno grupo de homens brancos – ou oficialmente brancos – donos dos canaviais, das terras gordas, das mulheres bonitas, dos cavalos de raça. Cavalos de raça tantas vezes tratados melhor que os trabalhadores da bagaceira”.

Seria difícil exagerar a complexidade desse texto. Ele revela que a dominação social se manifesta – e se realiza – através de uma sutil teia de relações materiais e simbólicas que promovem uma disposição seletiva dos seres vivos na paisagem. A cana e o cavalo, por exemplo, duas espécies exóticas que ajudaram a consolidar a conquista do território pelos europeus, participaram de maneira central na ecologia do poder da elite canavieira.

Daí se deriva, segundo o autor, uma apreciação diversificada da natureza e seus recursos pelos diferentes extratos sociais. A elite dos engenhos, representante de uma cultura exógena e conquistadora, por mais que estivesse adaptada ao contexto tropical, tinha dificuldade para estabelecer uma relação íntima com a flora e a fauna nativas, até mesmo por habitar uma paisagem profundamente modificada e domesticada segundo seus valores e interesses. Uma paisagem construída que, de certa forma, a isolava de um vasto território desconhecido e estrangeiro (em seus aspectos ecológicos e sociais).

A Mata Atlântica, especialmente os amplos domínios florestais que existiam para além dos espaços definidos pelas fronteiras dos engenhos, constituiu para essa primeira elite brasileira um objeto de estranhamento e obscuridade. Uma postura que, em diversos aspectos, continuou ao longo do tempo, inclusive no mundo posterior da elite urbana. Freyre relata, por exemplo, o dia em que visitando as matas do engenho Japaranduba, em companhia de seu amigo Pedro Paranhos, constatou que “ele sabia quase tão mal como nós, menino de cidade, os nomes das árvores do seu engenho. Entretanto eram suas conhecidas velhas desde o tempo de menino. Mas simples conhecidas de vista. Foi preciso que o caboclo nos fosse dizendo: isto é um pé disso; isto é um pé daquilo; isto dá um leite que serve para ferida brava; isto dá um chá que serve para febres”.

Tal experiência pessoal reforçou no sociólogo pernambucano uma constatação de natureza mais profunda e geral – “o brasileiro das terras de açúcar quase não sabe os nomes das árvores, das palmeiras, das plantas nativas da região em que vive, fato constatado por tantos estrangeiros. A cana separou-o da mata até esse extremo de ignorância vergonhosa. Na mata ele vê vagamente o pé de árvore e às vezes, quase desdenhosamente, o pé de pau. Quase que só o caboclo, o descendente de caboclo, do índio, do nativo, ou então do quilombola, em matas como a de Catucá, o negro fugido que se fez íntimo da natureza da região, pode nos guiar pelos mistérios dos restos das florestas do Nordeste, dando-nos a conhecer pelo nome – o nome indígena em grande número de casos – cada árvore que nos chame a atenção”.

É interessante notar, fazendo um pequeno parêntese, que Freyre associava essa “distância entre o colono branco e a mata, entre o dono de terra e a floresta” ao “quase nenhum amor pela árvore ou pela planta da região quando se trata de arborizar as ruas das cidades do litoral”. Uma tendência amplamente dominante no Brasil das primeiras décadas do século XX e que ainda hoje, pelo menos em parte, pode ser observada. Vale lembrar que o nosso grande paisagista Roberto Burle Marx, que na década de 1930 começou a projetar jardins urbanos dominados por espécies nativas e tropicais, uma atitude esteticamente revolucionária, descobriu o valor paisagístico de tais espécies em uma exposição botânica em Dahlen, na Alemanha, em 1928! Até então, nos cursos de urbanismo e arquitetura, o predomínio de azaléias, camélias, magnólias, nogueiras e outras espécies exóticas era absoluto.

Mas voltando às agens transcritas acima, vemos que nelas é possível destacar um conjunto de atores sociais que, ao contrário da elite neo-européia, conseguiu estabelecer um relacionamento íntimo com o território brasileiro e sua biodiversidade – o índio, o caboclo, o quilombola. É importante frisar que o ponto de visão do pensamento de Freyre não é o desses atores. Sua identificação natural é com a elite senhorial. Tanto que ele se trai ao associar o desconhecimento da natureza local com o “brasileiro das terras de açúcar”, como se os caboclos e quilombolas mencionados a seguir não fizessem parte do universo dos brasileiros…

Sua sagacidade como pensador, no entanto, permitiu que ele percebesse a complexidade da cultura brasileira, em sua relação com a natureza, para além da elite cujos feitos ele tanto soube, ao mesmo tempo, condenar e louvar. De toda forma, essa identificação entre os saberes populares e o conhecimento da natureza no Brasil, no campo das intuições ecológicas de Freyre, constitui uma das mais ricas para a pesquisa em antropologia e história ambientais. Um pequeno exemplo aparece na fascinante relação por ele estabelecida entre as origens do “Bumba-Meu-Boi” e a íntima ligação estabelecida pelos negros e índios com esse animal – também introduzido pelos colonizadores -, seu companheiro na sina do trabalho forçado.

Ao desenvolver o tema de maneira mais ampla em “Nordeste”, porém, dando vazão ao seu conhecido filoafricanismo, Freyre focalizou bem mais a contribuição dos africanos do que dos índios. Um campo de analise, aliás, o da relação entre cultura negra e ecologia, que hoje está sendo explorado com grande fecundidade por vários autores, como pretendo comentar em uma próxima coluna (apesar dos estudos sobre as formas de agricultura e manejo florestal vigentes nos quilombos serem ainda vergonhosamente incipientes).

Freyre chamou atenção, com agudeza histórica e sensibilidade humana, para o “esforço magnífico de adaptação e ao mesmo tempo de domínio sobre a natureza realizado aqui pelo negro”, identificando-o como “um dos aspectos mais expressivos da colonização africana nesse trecho da América Tropical”. Nas palavras do autor, “o negro a princípio tão medroso do tapuia e do mato grosso, se assenhoreou depois de algumas das florestas mais profundas do país e submeteu às suas tentativas rudes de colonização policultora, realizadas quase dentro das florestas virgens – que eram uma proteção contra os capitães-do-mato a serviço dos grandes monocultores brancos. O máximo de aproveitamento da vida nativa. Inclusive das palmas das palmeiras para numerosos fins, a começar pela habitação – arte em que o negro tornou-se rival do indígena, a ponto do mucambo de palha ter-se tornado tão ecológico como qualquer palhoça indígena”.

Essa ligação dos africanos com a biodiversidade local, lentamente construída, representou também uma afirmação de sua humanidade. Para o sistema escravocrata, nas belas palavras do autor, “bastavam as mãos e os pés do negro, bastava o seu sexo capaz de larga procriação. Nem precisava que ele trouxesse uma alma capaz de se ligar às árvores, aos pássaros e aos bichos”. Os africanos, contudo, especialmente nos espaços autônomos dos quilombos, souberam “amar e respeitar nas árvores, nas plantas e nos bichos da terra, para eles estranha, as árvores, as plantas e os animais parecidos aos do seu país de origem”. Souberam também, mesmo em condições adversas, introduzir no país “algumas das árvores e plantas da África mais queridas à sua alma e aos seus olhos”.

Vemos assim, através das finas intuições e análises de Gilberto Freyre, a possibilidade de recontar a história da complexa e mestiça sociedade brasileira de uma maneira inovadora, profundamente ligada ao rico meio natural onde ela vem se desenvolvendo. A partir dessa visão podemos reconhecer que nem tudo foi devastação na formação da cultura ambiental brasileira (mesmo tomando cuidado para não cair em um ambientalismo populista e romântico – pois está bem claro que a mentalidade predatória também esteve presente na cultura cabocla e caipira, a começar pelas queimadas imprevidentes na pequena lavoura). E constatar que não é nas casas-grandes e sobrados que devemos buscar os aspectos mais ricos da nossa herança de conhecimento sobre a natureza tropical, e sim nas senzalas, quilombos e mocambos.

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