Colunas

O Futuro das Baleias e um Tratado de Outro Planeta o6r46

Convenção Internacional da Baleia foi escrita em 1946 e é regida por normas definidas para um planeta que já não existe mais

20 de outubro de 2016 · 9 anos atrás
  • José Truda Palazzo, Jr. 493p3h

    José Truda é jardineiro, escritor, consultor em meio ambiente especializado em conservação marinha e tratados internacionais, e indignado.

Baleia Jubarte. Foto: Rui Freitas Rego/Flickr.
Baleia Jubarte. Foto: Rui Freitas Rego/Flickr.

Imagine por um momento que a gestão de recursos naturais da Terra, aliás, de seus oceanos, tenha de ser feita conforme as regras de um tratado internacional escrito em outro planeta. Quão aceitável seria essa aberração? Pois é. E, no entanto, é exatamente o que acontece com recursos marinhos nada menos relevantes e emblemáticos do que… as baleias.

Não perdi o juízo (mais que o normal) durante a viagem para a Eslovênia, nem fumei alguma coisa proibida além da conta. Mas ter de se tomar decisões sobre a vida ou morte das baleias conforme as normas de uma Convenção escrita em 1946, quando não havia internet, satélites dedicados ao acompanhamento de fauna a partir de marcadores eletrônicos, foto-identificação, ou turismo de observação de cetáceos – que dizer de consciência ambiental global – é como se fôssemos obrigados a seguir as regras definidas para um planeta que já não existe. Um planeta no qual a carne de baleia era parte essencial da dieta em um país destruído pela II Guerra Mundial (o Japão); onde a única forma conhecida de estudar as baleias era matando-as e esquartejando-as; e onde nenhum valor além do comercial era atribuído à fauna marinha, nem a baleias, nem a nada mais que nadasse dos oceanos.

Não é de se surpreender, visto por esse prisma, que atualmente a Comissão Internacional da Baleia (CIB) sofra de uma profunda esquizofrenia, de uma divisão interna paralisante, e de uma incapacidade de se adaptar ao século XXI. Concebido por um clube de países caçadores de baleias como forma de dividir de maneira pragmática o butim representado pela matança anual de milhares de baleias nos anos do pós-guerra, o tratado fundador da Comissão se preocupava basicamente com institucionalizar e promover essa matança. O resultado disso hoje todos sabemos: as espécies de grandes baleias foram levadas sistemática e criminosamente à beira da extinção. Apenas um movimento global contra a caça das baleias, incluindo a cidadania de muitos países antes baleeiros, foi capaz de reverter a partir da década de 1970 essa barbaridade a tempo de evitar a extinção da maioria delas (ainda que a baleia cinzenta do Atlântico tenha ido para as cucuias, bem como a baleia franca da costa europeia do Atlântico norte, bem antes da Comissão ter sido criada).

De 1946 para cá, a carne de baleia deixou de ser um alimento essencial, inclusive para muitas das comunidades então classificadas como “aborígenes” e que, se um dia dependeram lá no Círculo Ártico de carne de baleia para sobreviverem hoje a obtém com subsídios e tecnologia dada por governos abastados (como nos Estados Unidos) ou a compram e vendem em supermercados (como na Groenlândia, onde a renda per capita é uma das maiores da Europa). Tampouco o é mais para o Japão, cuja imensa maioria da população não come carne de baleia, sendo a matança ainda praticada por aquele país um mero trambique para amealhar subsídios estatais, enquanto milhares de toneladas de carne de baleia de temporadas de caça adas se amontoam em armazéns refrigerados, sem ter quem as compre. Também de lá para cá a Ciência com C maiúsculo ou a estudar as baleias através de métodos não-letais, ajudada pela tecnologia sempre em evolução, com técnicas de marcação satelital, análise de DNA, foto-identificação e muitas outras formas de entendermos como as baleias vivem, qual seu papel ecológico e a quantas andam suas populações depois de séculos de massacre desenfreado de parte dos macacos pelados que a tudo abatem sem muita consideração.

Ciência e consciência também nos levaram a reconhecer outros valores nas grandes baleias que não apenas o da carne e gordura. Por um lado, a recuperação gradual das populações permitiu que uma atividade iniciada de forma incipiente na costa oeste norte-americana na década de 1950, a observação turística desses animais, viesse a se disseminar pelo mundo a ponto de virar uma indústria de dois bilhões de dólares anuais em arrecadação, que opera em mais de 100 países e territórios e beneficia centenas de comunidades costeiras – sem ter de matar nenhuma baleia. Mas para além dos valores monetários, estamos descobrindo que as baleias são essenciais à ciclagem de nutrientes nos oceanos, contribuindo com sua recuperação populacional para mitigar as mudanças climáticas. Sob qualquer ângulo que se olhe, as baleias valem muito, mas muito mais vivas do que mortas.

Os poucos países baleeiros restantes não querem ouvir falar disso. Noruega, Islândia e Japão seguem matando baleias aos milhares, à margem da moratória da caça comercial imposta pela Comissão ainda nos anos 1980. Os Estados Unidos são contra a caça comercial, mas permitem que seus “esquimós” matem para seus festivais “culturais” uma das espécies mais longevas, a baleia bowhead, que pode ar dos 200 ANOS DE IDADE, com lanchas e granadas modernas. E a União Europeia dá cobertura para que a Dinamarca, de cujo reino a Groenlândia faz parte, massacre centenas de baleias sob a mesma desculpa mas com finalidade comprovadamente comercial.

Em meio a isso tudo, e com mais um oba-oba de algumas mega-ONGs internacionais que pegam carona de última hora num esforço de décadas de ativistas e gestores públicos brasileiros envolvidos no tema, o Brasil retorna mais uma vez à Plenária bianual da CIB para tentar aprovar a proposta de criação de um Santuário de Baleias do Atlântico Sul, que proibiria em definitivo a matança em nossa bacia oceânica e promoveria a cooperação regional para a pesquisa e o desenvolvimento do turismo de observação. Para ser aprovada, a proposta precisa de ¾ dos votos dos países presentes – uma tarefa nada fácil, já que o Japão controla um bloco de países africanos, caribenhos e outros à custa de “ajuda para o desenvolvimento pesqueiro” que na verdade envolve um verdadeiro petrolão de benesses indevidas. O Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, está vindo pessoalmente a Portoroz, na Eslovênia, onde a Comissão se reúne, para defender a proposta. E a chegada esta semana do novo Comissário do Brasil à CIB, Embaixador Hermano Telles Ribeiro, um nome muito respeitado no Itamaraty, é uma boa notícia para dar uma vitaminada em nossa representação diplomática no tema. O Instituto Baleia Jubarte, com apoio de parceiros nos demais países proponentes do Santuário na região, trouxe uma belíssima exposição a Portoroz demonstrando a importância sócio-econômica, cultural e ambiental das baleias para nossos países. Será suficiente? Pouco provável. O Brasil tem de aprender a torcer o braço de nossos “parceiros” recalcitrantes, como os países africanos nos quais investimos bilhões em cooperação, dos quais perdoamos dívidas gigantescas e que depois aparecem aqui para votar contra nossos interesses. E precisamos, sem sombra de dúvida, ajudar a reagrupar o bloco latino, que nesta reunião sofre com ausências como o Panamá e o Equador, que fugiram da raia e não enviarão representantes.

A votação da proposta do Santuário está prevista para segunda-feira. Será apenas aí que saberemos a contagem de votos efetiva. Em qualquer caso, é bom ver o Brasil novamente motivado e, na medida do possível tentando se articular, ainda que do nosso tradicional jeito mambembe, para defender as baleias, em franco contraste com a última Plenária da CIB neste mesmo lugar. Vejamos como caminha a coisa nos próximos dias, mas os aplausos a um novo Brasil tentando resgatar uma posição conservacionista de destaque, de que já desfrutou nesta Comissão de outro planeta, estão, ao que parece, garantidos.

 

Leia Também

O futuro das baleias e o teatro do absurdo

Faltam só 4 votos para a criação do Santuário de Baleias do Atlântico Sul

Corte Internacional proíbe a caça “científica” de baleias

 

                      

 

Leia também 84q8

Notícias
31 de março de 2014

Corte Internacional proíbe a caça “científica” de baleias 4l6p4w

Na justiça, Austrália derrota Japão, que será obrigado a deixar as baleias austrais em paz. Decisão é inapelável e sua obediência é compulsória.

Notícias
18 de agosto de 2016

Faltam só 4 votos para a criação do Santuário de Baleias do Atlântico Sul 4m5w4t

Brasil, Uruguai, Argentina, Gabão e África do Sul lançaram nesta quinta-feira uma campanha internacional para mobilizar os países a aprovar a proposta.  

Colunas
15 de setembro de 2014

O futuro das baleias e o teatro do absurdo b1j63

Reunião bianual da Comissão Internacional da Baleia começa às voltas com pautas anacrônicas e sumiço do Brasil nos primeiros dias do encontro.

Mais de ((o))eco 6q6w3q

cetáceos 4k3h2t

Notícias

Monitoramento de cetáceos em risco nas áreas afetadas pela catástrofe de Mariana 3rv5n

Salada Verde

Por um voto, proposta de criação do Santuário de Baleias no Atlântico Sul é rejeitada 2f55i

Reportagens

O que os estudos de cérebros de golfinhos e baleias sinalizam à proteção da biodiversidade? 622s26

Reportagens

Para salvar baleias, socorristas de México e EUA arriscam a própria vida i1oj

caça 2g4ia

Colunas

Os Crocodilos Perdidos da Amazônia 4s4y4u

Salada Verde

Assassinato de onça-pintada será investigado pela fiscalização federal 3l4w5s

Colunas

O pônei da Ursula e o destino dos lobos europeus 6148

Análises

Javali: espécie exótica? Sim. Praga? Talvez. Desculpa para a caça? Com certeza 6f1o4k

CIB 3n4d6e

Salada Verde

Por um voto, proposta de criação do Santuário de Baleias no Atlântico Sul é rejeitada 2f55i

Salada Verde

Brasil reafirma defesa de santuário de baleias no Atlântico Sul em declaração conjunta com o Chile 702b4d

Notícias

Manobra de países baleeiros evita criação de Santuário de Baleias no Atlântico Sul 5n2g3z

Salada Verde

CIB aprova declaração que protege baleias da caça comercial 2y3g5d

conservação 4y3hz

Notícias

Governo, ongs e sociedade civil se manifestam contra aprovação do PL do Licenciamento 352x2h

Colunas

Mercantilização e caos no licenciamento ambiental brasileiro 1o156g

Notícias

PV questiona no STF lei estadual que flexibiliza proteção ambiental em Rondônia 172e6b

Salada Verde

Agenda do presidente definirá data de anúncio do plano de proteção à biodiversidade 1x2p2z

Deixe uma respostaCancelar resposta 4wh1i

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Comentários 3 2j4w2q

  1. Carlos Gabi e Mel diz:

    Belíssima análise Truda!
    Explica muita coisa e nos deixa bem cientes do que se a ,da muita hipocrisia que ainda reina no planeta que precisa urgente de gente mais lúcida e competente decidindo novos rumos na conservação.
    Vc vale ouro rapaz…e ainda bem que o Brasil tem novos gestores que vão reconhecer seu trabalho.
    Vamos acreditar num resultado positivo amanhã!


  2. Ótima análise, Truda. E pensar que a Islândia ganha força como destino do propalado turismo ecológico.


  3. Angela Kuczach diz: