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Sobre Hitchcock, desmatamento e o pesadelo ambiental 1w4zf

Parece que o trio Bolsonaro-Mourão-Salles (BMS) andou sonhando com a política ambiental brasileira. O resultado do sonho? Um tal de Conselho da Amazônia

14 de julho de 2020 · 5 anos atrás
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    Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

  • André Albuquerque Sant’Anna 5do1i

    André Albuquerque Sant’Anna é Pesquisador do Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento (CEDE/UFF ) e do Grupo de...

Alfred Hitchcock não teve sempre reconhecida sua genialidade. Foi François Truffaut, outro gigante do cinema, que resgatou o diretor inglês, com suas críticas no Cahiers du Cinéma. Alguns anos depois, em uma série de entrevistas que compõem um fabuloso livro para os cinéfilos, Truffaut pergunta a Hitchcock sobre processo criativo e como o autor desenvolvia suas ideias. Em uma das agens mais divertidas, Hitchcock relata que sempre tinha sonhos geniais, mas, ao acordar, esquecia de suas ideias. Um dia, aconselhado por sua esposa, dormiu com caderno e caneta ao lado. Ao acordar, foi ler o que tinha escrito na madrugada: “um homem se apaixona por uma mulher”.

Pois bem, parece que o trio Bolsonaro-Mourão-Salles (BMS), recordista em gols contra, andou sonhando com a política ambiental brasileira. O resultado do sonho? Um tal de Conselho da Amazônia. Bom, basta de comparações com Hitchcock, por razões óbvias ao leitor.

O tal Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) tem por finalidade ser “o órgão responsável pela coordenação e acompanhamento da implementação das políticas públicas voltadas para aquela área” (Art. 2º. Do Regimento Interno do CNAL). Ao que parece, a criação do CNAL seria para deixar “os adultos na sala” cuidarem da Amazônia.

Por essa razão, no dia 10/7, o vice-presidente da República participou de videoconferência com executivos. Estes estariam preocupados com impactos negativos em seus negócios, como decorrência da incessante alta no desmatamento na Amazônia – o desmatamento em 2019 foi de mais de 10 mil km2, 34% superior a 2018, e os números mensais para esse ano são ainda piores. Mourão, muito cioso, prometeu entregar um plano em algum momento deste ano, porém alegou não ter como apresentar meta de desmatamento neste momento.

Rapidamente, observadores pouco atentos ao estilo desse governo se animaram com a pressão de empresários nacionais e gestores de fundos de recursos internacionais. Como usual, o governo tenta apenas ganhar tempo. Diante do anúncio de mais uma alta na taxa de desmatamento, medida pelo INPE, o governo fez aquilo que sabe: matou o mensageiro. Pelo segundo ano consecutivo de alta no desmatamento, cabeças rolaram no INPE por informar o óbvio (dessa vez, foi a coordenadora geral de Observação da Terra). Sim, é assim que se conquista a confiança internacional.

“Para aqueles que desmatam, o ganho esperado de capital é brutal: o valor da terra de pastagem é cerca de cinco vezes o valor da terra com floresta, na Amazônia”.

O que causa curiosidade é: como BSM são capazes de marcar mais um gol contra poucos dias após importantes grupos de pressão externarem preocupação com a dinâmica do desmatamento?  Vislumbro duas explicações complementares. A primeira encontra eco em Mancur Olson. O autor de “A Lógica da Ação Coletiva” procura entender por que alguns grupos são mais efetivos ao influenciar políticas públicas. Um fator fundamental é a coesão dentro dos grupos de interesse. Como fica claro em entrevista de Rubens Ometto, acionista da Cosan, na Folha de S. Paulo de 12/7/2020, alguns empresários entendem que a condução do ministro do Meio Ambiente é correta e bem intencionada e tudo não a de uma armadilha de interesses internacionais para melar acordos comerciais. Portanto, parece que a preocupação de uma parte do empresariado não é por uma política ambiental efetiva, mas sim por um marketing ambiental efetivo. Além disso, para aqueles que desmatam, o ganho esperado de capital é brutal: o valor da terra de pastagem é cerca de cinco vezes o valor da terra com floresta, na Amazônia (de acordo com dados do Anualpec para 2018). Assim, temos a combinação de interesses difusos de um lado e interesses bastante concentrados de outro.

Há outra explicação possível. O economista Dani Rodrik, em artigo de 2014, chama atenção para algo além dos interesses na explicação sobre adoção de políticas públicas: ideias. De acordo com Rodrik, as ideias que agentes políticos têm sobre o que deve ser maximizado, como o mundo funciona e quais ferramentas estão à sua disposição são fundamentais para explicar o caminho traçado por algumas políticas públicas. No caso da Amazônia, não é difícil ver como o trio BSM pensa a respeito de política ambiental. Basta lembrar de frases como “a porra da árvore” ou “ar a boiada”.  

Enfim, com ideias desse quilate, não há muito o que esperar de positivo desse governo em relação à política ambiental. Voltando a Hitchcock, não há nenhum suspense nessa história. Só nos resta escapar desse pesadelo o quanto antes.

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