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Ameaça permanente 6ve3k

As araucárias de Santa Catarina são cada vez mais escassas e o governo estadual faz muito pouco, ou nada, para protegê-las da extinção. A pior situação é no planalto.

Carolina Elia ·
6 de janeiro de 2006 · 19 anos atrás

Em Santa Catarina, há sempre um jeito de cortar araucária com o respaldo de autoridades. Nos últimos quatro anos, diferentes subterfúgios e brechas legais foram descobertos e sanados, mas os madeireiros continuam a contar com um grande aliado: o governo do Estado.

No executivo, o governador Luiz Henrique da Silveira (PMDB) questiona na justiça a constitucionalidade do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Alega que o direito à propriedade sobrepõe-se à criação de áreas de preservação ambiental, como as que o governo federal tenta implantar em Santa Catarina para a preservação de araucárias. No dia-a-dia, os madeireiros contam com licenças dadas pela Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fatma), responsável por autorizar desmates em áreas urbanas ou de vegetação inicial no perímetro rural. Em áreas em que a mata se encontra em estado de regeneração médio ou avançado, a responsabilidade é do Ibama. Mas isso não é cumprido.

Em 2004, fiscais do Ibama flagraram desmatamentos liberados pela Fatma em área com vegetação significativa. “Detectamos os desmates por fiscalização aérea, realizada com helicóptero. Nas áreas mais expressivas fizemos levantamentos e descobrimos que muito corte indevido foi autorizado pela Fatma”, conta um técnico do Ibama de Santa Catarina que participou da operação. Em muitos casos, tratava-se de propriedades que tinham um pedaço minoritário de floresta em estado inicial e o resto em estado médio e avançado. A Fatma liberou o corte em todo terreno. O levantamento costuma ser feito por um engenheiro contratado pelo dono das terras, que utiliza uma parte da mata para avaliá-la como um todo. A Fatma não é obrigada a visitar a propriedade e assina embaixo do que diz o levantamento.   

Os inventários apresentados também não incluem espécies ameaçadas, como é legalmente exigido. Durante operações de fiscalização, técnicos do Ibama encontraram pegadas de felinos silvestres. “Todas as espécies estão em extinção e as matas são seu último refúgio”, revela o fiscal que encontrou nas trilhas papagaios e pica-paus carbonizados. “Não há nada pior do que descobrir um desmatamento pseudo legalizado”, desabafa.

A Fatma confirma estar ciente de casos de falsificação de laudos, mas segundo Rode Amélia Martins, procuradora jurídica da Fundação, os últimos ocorreram em 2002. Ela também afirma que a Fatma não pode ser responsabilizada por inventários  feitos por terceiros, e argumenta: “É difícil inibir todo e qualquer tipo de fraude”.

Preferência pela Fatma

Em Santa Catarina, há todos os tipos de desmate. O sem licença nenhuma, o legal, o que tem licença mas desrespeitou os limites estabelecidos e o que recebeu “licença altamente discutível”, como dizem técnicos e ambientalistas da região. Eles reclamam que a licença concedida pela Fatma é apenas uma folha, que não inclui mapa, dados de georreferenciamento ou especificação da área liberada para corte. “Em 2004, encontramos um desmatamento grande cujo proprietário das terras não sabia especificar até onde tinha recebido licença para cortar”, revela um fiscal do Ibama.

Mas o caso que virou símbolo do novo tipo de estratégia para se derrubar matas em Santa Catarina foi um desmatamento de 300 hectares flagrado pelo Ibama perto do município de Canoinhas. Na hora da autuação, os responsáveis não apresentaram nenhum documento que justificasse a derrubada, mas perante a justiça mostraram um auto de infração expedido pela Fatma 15 minutos antes da chegada do Ibama ao local, como se os fiscais estaduais tivessem acabado de sair quando os técnicos federais chegaram às terras desmatadas. Apesar da multa imposta pela Fatma ser mais alta que a do Ibama, o proprietário preferiu o auto de infração imposto pelo Estado e depois assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o governo de Santa Catarina. O TAC o dispensou do pagamento da multa milionária em troca de cerca de 100 mil reais para a criação de uma unidade de conservação em plena área urbana de Canoinhas.


Segundo a procuradora da Fatma, os proprietários de terra não costumam avisar aos fiscais que já foram autuados por outros orgãos porque preferem ver qual renderá uma multa ou solução melhor. “O Estado tem preferência nas autuações”, diz Martins, “e muitos preferem as da Fatma porque a última instância é estadual. Há mais chances de defesa”.     

Logo depois da Semana do Meio Ambiente, em maio do ano ado, o presidente da Fatma, Sérgio Grando, suspendeu concessões questionadas publicamente pelo Ibama e por ambientalistas, mas alguns meses depois as fraudes voltaram a ocorrer. “Hoje está tudo igual, da mesma maneira”, conta João de Deus Medeiros, da Federação de Entidades Ecológicas Catarinenses (Feec).

No Ibama, fiscais reclamam de serem questionados por multarem áreas licenciadas pela Fatma. “Já mostramos o que acontece”, diz um importante funcionário do Ibama de Santa Catarina. “Dois anos de levantamento já são o suficiente. O leão levou uma cacetada, mas continua mordendo”.

Na cova do leão

Até 2001, era banal conseguir autorização para cortar araucária em Santa Catarina . O Ibama concedia planos de manejo sem explicitar que era proibido cortar espécies ameaçadas de extinção, como araucária e imbuia. Com o auxílio de laudos de engenheiros florestais, madeireiros também legalizavam desmatamentos com o argumento de que as árvores foram encontradas mortas ou caídas. A negligência provocou uma Ação Civil Pública movida pelo Instituto Socioambiental (ISA), que levou a uma resolução do Conama e a uma instrução normativa proibindo o corte de espécies ameaçadas. Exatamente como determina o Código Florestal.

Mas ficou uma brecha. A resolução 278 do Conama não fazia restrição a manejo de espécies plantadas e a instrução normativa, publicada quase que simultaneamente à resolução, regulamentava a autorização de corte desse tipo de árvore. Se um fazendeiro tivesse em sua propriedade araucárias plantadas por ele, ou por gerações anteriores, bastava apresentar ao Ibama um documento chamado Informativo de Corte e a autorização para cortá-las era concedida. O Ibama descartava a necessidade de uma visita técnica para conferir a origem das árvores ou de uma autorização para o transporte da madeira. “ou a chover informativo de corte”, conta uma funcionária do setor de fiscalização do Ibama em Florianópolis.

No início, a quantidade de araucárias plantadas não provocou estranheza aos órgãos fiscalizadores – Ibama e Fatma. Qualquer informativo de corte obtinha sim como resposta até que a equipe de fiscalização do Ibama mudou e grupos ambientalistas denunciaram o lado inverossímil dos fatos. Em uma missão conjunta, técnicos do Ibama e de organizações não-governamentais levantaram nos escritórios regionais de Santa Catarina quantos informativos de corte tinham sido apresentados entre 2001 e 2003 e visitaram algumas das propriedades listadas. Em quase 100% delas, as árvores cortadas eram originárias da Mata Atlântica, tinham mais de cem anos, ninguém as plantou. O golpe ficou conhecido como “Araucárias do Vovô” e permitiu o corte de cerca de 1 milhão de árvores da espécie.

A descoberta da fraude levou a uma nova instrução normativa, que obrigou a visita prévia de técnicos às propriedades e a emissão de autorização para o transporte das toras. “Assim que a norma entrou em vigor, as solicitações de corte para árvores plantadas sumiram”, conta João de Deus. O Ibama confirma que o número de solicitações caiu drasticamente, principalmente em pequenas propriedades, onde madeireiras ofereciam dinheiro para os donos, de pouca renda, para cortar suas matas. “Ainda temos algumas solicitações de corte porque existem araucárias plantadas no Estado, mas hoje temos mecanismos de controle maiores”, afirma uma fiscal do Ibama.

Com base na nova instrução normativa, o Ibama realizou em Santa Catarina, principalmente na região do planalto, as operações Gralha Azul e Araucária. Só em 2004 foram detectados 206 pontos de desmatamento, alguns com autorização da Fatma atestando que áreas em regeneração média e avançada se encontravam em estado inicial. Tanto esses casos como os de araucárias falsamente plantadas foram autuados e encaminhados ao Ministério Público Federal. Nenhum processo ainda foi concluído, mas só a operação Araucária 4 rendeu quase 8 milhões em multas.

Segundo o procurador Mauricio Pessuto, que trabalha desde 2002 em Santa Catarina com enfoque no corte ilegal de araucárias, a maioria dos casos é de desmatamentos clandestinos. Mas ele reconhece que licenças inadequadas merecem investigação. “Descobrimos brecha, estancamos. Mas eles descobrem outras. Este é o principal problema ambiental que enfrentamos no meio oeste do planalto”, afirma.

Para o ambientalista João de Deus não se trata mais de brechas, mas de ilegalidade pura. Segundo ele, é impossível fazer um levantamento junto à Fatma como foi feito com o Ibama para combater o golpe das araucárias plantadas devido à dificuldade de obter informações com a Fundação. “Ninguém sabe, ninguém viu”, diz.

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