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O adeus de Niède Guidon, a matriarca da Serra da Capivara 281z1u

Arqueóloga foi uma das principais forças para criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, e mudou a compreensão sobre a ocupação humana das Américas

Duda Menegassi ·
4 de junho de 2025

Aos 92 anos, Niède Guidon faleceu na madrugada desta quarta-feira (4). A arqueóloga franco-brasileira sofreu um infarto em sua casa, em São Raimundo Nonato, no Piauí, e não resistiu. Ela se despede do mundo no lugar que justamente a projetou para ele: a Serra da Capivara, um dos locais com a maior concentração de pinturas rupestres do planeta. Foi lá que mais de cinco décadas de trabalho deixaram um vasto legado que vai muito além das fronteiras científicas e arqueológicas. Niède foi uma verdadeira matriarca, tanto para Caatinga e para Serra da Capivara, da qual tanto cuidou – sendo peça-chave para criação de um parque nacional na região – quanto para seus alunos, colegas de trabalho, assistentes de campo e também para os moradores dos municípios ao redor da área protegida.

Seus estudos na Serra da Capivara mudaram o entendimento sobre presença humana nas Américas com evidências arqueológicas que apontam que o povoamento do continente americano teria ocorrido há mais de 50 mil anos, muito antes do que se acreditava até então.

“A história do patrimônio cultural brasileiro se divide entre antes e depois de Niède Guidon, uma referência da cultura e da ciência em nosso país, que abriu caminhos para milhares de pessoas que se sentiram chamadas a preservar nossa memória”, definiu o presidente do Iphan, Leandro Grass.

Essa trajetória começou na década de 60, em 1963, quando por meio de fotografias, que Niède viu pela primeira vez as pinturas rupestres da Serra da Capivara. Na época, a arqueóloga trabalhava no Museu do Ipiranga, da Universidade de São Paulo (USP). A curiosidade de ir atrás dessas pinturas foi interrompida pelo golpe militar, no ano seguinte, que deu início à ditadura no Brasil. Para escapar da perseguição política, buscou exílio na França, onde continuou seus estudos. 

A arqueóloga Niède Guidon. Foto: Fumdham

Quase uma década depois, em 1973, teve a chance de ver ao vivo as tais pinturas rupestres do sudeste do Piauí com a Missão Arqueológica sa no Piauí, financiada pela França. Apenas nesta primeira incursão com seus alunos, que durou cerca de dois meses, foram documentados mais de 100 sítios arqueológicos. Daí em diante, não parou mais as pesquisas, envolvendo desde cientistas renomados até jovens recém-formados. Atualmente, o Iphan já reconhece mais de 400 sítios dentro do parque.

“Ela era de uma generosidade enorme, de acolher os jovens pesquisadores e as pessoas que estivessem dispostas a estudar e fazer as coisas com seriedade. E foi assim que eu cheguei na Serra da Capivara, eu tinha acabado de me formar, ela disse que precisava de uma zoóloga e me acolheu”, lembra Marcia Chame, que começou a trabalhar com Niède na década de 80. “Ela era uma matriarca de verdade, não só da Serra da Capivara, porque ela cuidava de todo mundo. Ela não teve filhos, mas todos nós fomos filhos dela”, completa Chame, hoje coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre da Fiocruz.

Como boa mãe, dava bronca e exigia o melhor de cada um ao seu redor. “Ela sempre falava que as pessoas que estivessem ao lado dela deveriam ser melhores que ela. Era uma pessoa de um rigor e uma exigência altíssima. Qualidade era uma coisa inegociável no trabalho. E ela acompanhava todas as áreas, não só arqueologia”, continua Marcia, que é também diretora científica da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham).

A Fumdham, criada em 1986 por um grupo de pesquisadores liderados por Niède, é outro dos muitos legados deixados pela arqueóloga. A entidade civil surgiu para apoiar na captação de recursos para projetos científicos, sociais, culturais e de conservação da natureza e, com isso, garantir a preservação do patrimônio do Parque Nacional da Serra da Capivara, criado anos antes, em 1979, também fruto da luta de Niède.

A arqueóloga Niède Guidon. Foto: João Marcos Rosa

Tornou-se uma liderança, numa época em que poucos esperavam ver uma mulher nesse papel em pleno semiárido brasileiro. Com coragem e uma visão integrada, investiu nas pessoas das comunidades ao redor do parque. Fomentou projetos de educação, de saúde, promoveu alternativas de emprego e renda, como a meliponicultura, a cerâmica e o turismo. A reboque da conservação, transformou a realidade de municípios como São Raimundo Nonato e Coronel José Dias, principais portas de entrada do parque, onde estão os museus do Homem Americano e da Natureza.

Em nota oficial, o Museu do Homem Americano enalteceu o legado de Niède Guidon:  “Mais do que uma cientista, Niède foi uma incansável defensora da preservação do patrimônio cultural e natural do país”, destaca o texto. “Sua trajetória é marcada pela paixão, pela persistência e por uma visão generosa da ciência como instrumento de transformação social. Graças ao seu trabalho, milhares de estudantes, pesquisadores e moradores da região foram impactados, e a Serra da Capivara se tornou um símbolo do nosso ado mais remoto”.

A Academia Brasileira de Ciências (ABC), da qual Niède foi membro titular, também lamentou a morte da arqueóloga, destacando que “Sua luta incansável para conectar os sítios arqueológicos à realidade local é um exemplo de como a ciência, quando atenta ao mundo ao seu redor, pode se tornar um vetor de crescimento e transformação social”.

“Na cabeça dela, era muito claro que era impossível você ter um parque nacional conservado sem melhorar a situação das pessoas. Ou você abraça isso de forma integrada, ou não adianta. E essas pessoas se tornaram amigos, parceiros, autores dessa história. E ela sempre reconheceu isso”, conta também Marcia Chame. “É um legado que mostra como uma região do semiárido pode ser transformada com base na ciência, buscando formas de vida sustentáveis e justas. Acho que esse é o grande legado é transpor todo o conhecimento científico para devolver isso pra sociedade”, completa. 

Uma das principais arelas de visitação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, tirada em 2019. Foto: Duda Menegassi

O presidente do ICMBio, Mauro Pires, também lamentou o falecimento da arqueóloga. “Sua contribuição à arqueologia mundial e à ciência brasileira é imensurável. Mas é na Serra da Capivara que seu legado se torna ainda mais emblemático: aliou, com maestria e visão de futuro, a preservação ambiental ao desenvolvimento local, valorizando saberes tradicionais e fomentando iniciativas de base comunitária”.

A chefe do Parque Nacional da Serra da Capivara, Marian Rodrigues, ressaltou ainda que “o legado da doutora Niède Guidon precisa ser preservado com responsabilidade e respeito à grandiosidade de sua trajetória”. 

O Ministério da Cultura e o Iphan também homenagearam Niède, que “carrega consigo o mérito de ter transformado a Serra da Capivara em um dos mais importantes sítios arqueológicos do mundo”. 

O velório de Niède Guidon está sendo realizado no próprio Museu do Homem Americano, em São Raimundo Nonato. A despedida, aberta ao público, teve início na tarde desta quarta-feira (4) e seguirá até meia-noite de quinta (5). O sepultamento será feito no quintal da casa da arqueóloga, nos fundos do museu, de acordo com um desejo da própria Niède.

Em homenagem à arqueóloga, o governador do Piauí, Rafael Fonteles (PT), decretou luto oficial de três dias a partir desta quarta.

Niéde e seu trabalho no Parque Nacional da Serra da Capivara foram protagonistas da terceira temporada da websérie Pé no Parque, produzida por ((o))eco. Assista abaixo e relembre:

  • Duda Menegassi 5t4258

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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