Nas últimas semanas, o Brasil assistiu perplexo o avanço do Projeto de Lei nº 2.159/2021, que propõe flexibilizar drasticamente o licenciamento ambiental no país, praticamente anulando-o, e a exposição da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a uma seção brutal de violência de gênero, em pleno Senado Federal. Longe de desconexos, os episódios simbolizam um ataque claro à sociedade e ao meio ambiente brasileiro. A tentativa de fragilizar mecanismos legais e projetar pessoas que defendem a vida como inimigos escancara o delírio vivido por grande parte das lideranças políticas, que ignoram as injustiças sociais, o cenário ambiental atual e as previsões de colapso climático do planeta.
Diante dessa ameaça, a sociedade civil tem se manifestado. Cresce um movimento de resistência entre aqueles que não compactuam com a iniquidade instaurada nas decisões políticas ambientais. Entre essas vozes, ganharam espaço e força as de lideranças religiosas. Na última semana, uma carta pública assinada por mais de 30 organizações religiosas, entre elas a Aliança Cristã Evangélica Brasileira, a Visão Mundial, a CNBB, a Iniciativa das Religiões Unidas (URI), a Iniciativa Inter-religiosa Pelas Florestas Tropicais (IRI), e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), foi enviada ao Congresso em um forte apelo para que o PL 2.159/2021 seja rejeitado. A carta afirma que o projeto “legaliza a dispensa de licenciamento para atividades que degradam, potencializam os desastres climáticos e retiram o direito à consulta de povos tradicionais”. Com base em valores de fé, as organizações pedem que parlamentares escutem o “clamor da terra e dos mais vulneráveis”.
Essa reação não nasce do acaso. Em tempos de mudanças climáticas, os cristãos entendem que a fé convida à responsabilidade. A ética cristã é categórica na ordenança de cuidar do meio ambiente, dada pelo próprio Deus ao homem no relato bíblico do livro de Gênesis 2:15: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar.” Cultivar e guardar o jardim implicam na responsabilidade de desenvolver com sustentabilidade. Usufruir sem destruir. Produzir sem explorar. E ir além: é necessário ser um guardião. Atuar na defesa da criação. Na lógica cristã, essa defesa se dá também porque a própria criação é uma manifestação do poder do Criador. Salmos 19 afirma que “os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos”. Enquanto a natureza manifesta a glória daquele que a fez, também aguarda pela redenção do mundo. Em Romanos 8, a criação inteira geme, espera por libertação e ”aguarda a manifestação dos filhos de Deus”.
Transportando para a responsabilidade prática, essas agens refletem também a responsabilidade de agir. Buscar políticas públicas justas que protejam a vida em todas as suas formas é uma das maneiras. Como diz Provérbios 31:8-9: “Erga a voz em favor dos que não podem defender-se, seja o defensor de todos os desamparados”.
Nesse sentido, a defesa do licenciamento ambiental parece óbvia. Esse é um mecanismo que visa proteger a sociedade, principalmente os que têm menos voz: comunidades ribeirinhas, indígenas, quilombolas, moradores de periferias. É um escudo contra empreendimentos mal planejados e executados que podem impactar a vida e os direitos fundamentais, resultando em catástrofes ambientais e mortes. Apesar dos limites de atuação e entraves existentes, o licenciamento tem atuado como um instrumento de proteção da criação.
Mas para garantir um desenvolvimento com responsabilidade ambiental, não basta discutir licenciamento no fim da linha. É preciso olhar para a elaboração dos projetos. Quando analisamos o planejamento estratégico de grandes obras de infraestrutura no Brasil, principalmente para transportes de cargas, nota-se que há uma ausência de critérios técnicos robustos com análises socioambientais desde o início em sua formulação. Os projetos chegam para execução como resultado de pressão de setores influentes organizados, e não como conclusão de processo de estudo e análises. Decidir onde, por que e como construir uma rodovia, hidrovia e ferrovia envolve olhar para necessidades reais da população brasileira, como abastecimento de regiões isoladas, escoamento de produtos da sociobiodiversidade, integração de modais menos poluentes, e que tipo de desenvolvimento pretende-se financiar.
A melhor forma de assegurar que o desenvolvimento respeite as pessoas e a criação é trazer os cuidados para a fase de concepção das intervenções de grande porte. Como lembra André Luís Ferreira, diretor-executivo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), que defende a implementação de boas práticas no processo de planejamento, “o Brasil precisa institucionalizar as boas práticas de planejamento e avaliação de alternativas em projetos de infraestrutura, levando em conta não apenas os custos e benefícios econômicos privados, mas também os riscos sociais e ambientais de cada alternativa. Mudanças no processo decisório de infraestrutura de transportes são urgentes para garantir que os projetos selecionados para receber investimentos realmente atendam ao interesse público”, afirma.
O Plano Nacional de Logística 2050, atualmente em construção, é uma oportunidade para institucionalizar essa lógica. Aqui, surge a oportunidade para institucionalizar um processo responsável como política de Estado. É um ponto de ação fundamental para garantir princípios cristãos de justiça social desde o início da concepção do que o país pretende fazer. Um planejamento bem feito facilita a vida do licenciamento depois, acelera decisões e resulta em projetos com mais benefícios para toda a sociedade, inclusive para as comunidades locais.
Buscar o desenvolvimento econômico com responsabilidade social e ambiental é o caminho para criar uma sociedade mais equilibrada, harmônica e justa. No pensamento cristão, essa é uma ordenança bíblica. Como ensina o livro de Levítico, a terra precisa de descanso. E nós precisamos cultivar e cuidar do jardim.
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